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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

faroletes

 

Vivi quarenta e quatro anos no passado remoto. O que melhor me define - para além do que escrevi, amei, transei, sofri, gargalhei, falei, escutei, engordei - é ser do século 20. O século que inventou o automóvel, o ônibus espacial, o viagra, a fralda descartável, a penicilina, a televisão, a pílula anticoncepcional, o computador, a internet.

O século do dadaísmo, futurismo, modernismo, surrealismo, feminismo, ecoturismo. E também do nazi-fascismo, macartismo, da bomba de Hiroshima, da guerra fria, da Cia, da Kgb, do Dops, do Doi-Codi. O século do prêt-à-porter, dos supermercados, dos imensos campos de refugiados. Dos cem anos em transe.

Quando leio ou ouço slogans que ligam o século 21 a novas maneiras de trabalhar, se relacionar, ver o mundo, fazer política, escrever, sinto a contundente sensação de ser um disco de vinil numa lista do iTunes, ou uma tartaruga num autódromo.

Se houvesse um cemitério para séculos, dentro da cova do século 20 sepultaríamos: a máquina de escrever, o papel carbono, a letra set, o mimeógrafo, o papel almaço, a gilete, o moedor de carne doméstico, o coador de pano, as cartas manuscritas, as vidas secretas.

Uma pessoa ou um século vão envelhecendo não tanto por se sentirem antigos, mas porque os outros os veem velhos. Tornou-se um desapreço dizer que uma coisa, um processo, um produto são do século 20. E é uma manifestação de júbilo e gozo nomear coisas, processos, produtos com a grife do 21.

Como nossa mente é uma incrível fábrica de clichês e eles se reproduzem mais rápido do que os mosquitos da dengue, o século 21 já ganhou várias alcunhas: flexível, hiperconectado, veloz, descartável, inseguro, tecnológico, belicoso, informadíssimo, 2.0.

Numa dança das cadeiras, a imaginação pública vai incluindo e excluindo. Perdem poder a imprensa, a escola, a literatura, o sindicado, o copyright. Ganham poderes os blogs, as redes sociais, as autorias coletivas, o comércio eletrônico, o audiotextovisual, as indignações, as ocupações-relâmpago.

Sempre foi assim. Os ventos jovens adernando velhos navios, aposentado timoneiros, lançando ao mar ilusões fresquinhas. Sempre essa ardentia por faróis de novos mundos. Fazer diferente aquilo que fazemos igual há tanto tempo.

Mas alto lá!, berram os mais experientes. A novidade é um desejo tão antigo quanto a humanidade. O novo nunca vive no presente. Ele mora no futuro, o tempo que jamais alcançamos. E falando no pé do seu ouvido: os legítimos cidadãos do século 21 têm no máximo doze anos.

fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.

8 comentários:

Caio Pompeu disse...

Um dia desses estava pensando sobre essa necessidade de reinventar o que já existe. É uma coisa meio instintiva ou sei lá o quê... Quando eu era criança, a partir de um momento, não me contentei mais em comer banana do jeito tradicional. Revolvi ficar de ponta-cabeça no sofá para ver se, ao engulir, a banana "desceria" para o meu estômago. Descobri que sim e anos depois me disseram em uma aula de Ciências que isso tinha a ver com os movimentos peristáltilos do esôfago... Olhem só que coisa!

izaias almada disse...

Belo texto, Fernanda.
Há uma frase da velha e boa senhora Simone de Beauvoir numa de suas muitas publicações que diz o seguinte: "Nem todo novo é revolucionário".
Concordo em gênero, número e grau, como diziam (ou dizem)algumas pessoas da minha geração.
Às vezes as novas gerações (e eu devo ter sido assim na juventude) é achar que toda novidade é o que vale e correm o risco de "estarem reinventando a roda".
Mas a vida é assim e viver é maravilhoso, apesar da barbárie atual.
Abração,
Izaías

Júnia disse...

Lindo e instigante como sempre, Fernanda, registrando que o assédio à privacidade dos tempos de hoje me deixa de cabelo em pé.

nair benedicto disse...

Eu adoro o Zé Miguel Wisnik, porque ele lida com
tudo isto muito muito bem. Um pequeno trecho do
"Indivisivel" um dos últimos cds:
"Feito para acabar"(marcelo janeci,Paulo Neves e
Zé miguel Wisnick)

"a gente é feito pra acabar
a gente é feito pra dizer (que sim)
a gente é feito pra caber (no mar)
E isso nunca vai ter fim"

Tânia Murakami disse...

Tem muita verdade nesse texto...Acabo de voltar de viagem e convivi 5 dias com crianças.Um com 9 anos, está lendo seu 3º livro e gosta de aventuras mitológicas.A outra, de 5,vira e mexe olha no fundo dos meus olhos e dá um sorrizinho como quem diz: "Olha como a vida é bela!".A outra, de 13 anos, fez-me pensar em como o ser humano teria uma melhor comunicação se fosse direta como ela.O século 21 pertence a
essas crianças sim!
Outro comentário que gostaria de compartilhar é sobre o que é antigo no seu 5º parágrafo. Há pouco tempo, parada esperando o metrô chegar, os trilhos começaram a me chamar a atenção...Eu disse para mim mesma:" Olha!...os vagões podem ser mais modernos mas os trilhos... continuam os mesmos!!!Idênticos!!!!

sergio Farias disse...

Por ter apenas dose anos,A tal Reforma Agrária neste século continua analfabeta.

CLinck disse...

e o desejo de ser sempre novinho, ao nascer já para de girar.
Cai do bonde da história, e vai para o acostamento... vai ficando...
Lá trás!
Um segundo...
um minuto...
minutos...
velhinho.
Já era!
(valeu Fê, agora e sempre, amém + 1 vez)

Alba Lucy disse...

O devir e o atemporal são igualmente dimensões de expressão de humanidade. Séculos se passaram no culto rentável ao segundo, até o culto à velocidade, à mudança se tornar motor de rendimento incomensurável para o capital.

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