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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A isca de Felipe

– Eita sensação de merda, puta que o pariu!, resmunga Jurandir no seu carro, um modelo SUV, parado no farol da avenida Brasil com a Henrique Schaumann, em São Paulo.

Ele vê o mesmo que todo paulistano motorizado: jovens em busca de um trocado fazendo malabares com bolinhas e bastões enquanto a cidade corre insana.

– Toma aqui rapaz! Você é esforçado.

O mesmo gesto é repetido ao longo do dia por centenas de motoristas diante do desajeitado Felipe, um negro baixo de 16 anos, rosto bolachudo, e muito magro de cabelo rastafári e tranças coloridas em vermelho e amarelo.

Lipe, como foi apelidado pelos camaradas do entorno, trabalha de segunda a sábado, das 8h às 20h. Levanta cinco da matina, veste tênis, bermuda, camiseta, pega mochila e o material de trabalho – cinco velhas bolas de tênis – e sai vazado. Não há tempo a perder.

Come no caminho do trabalho, nas barracas que ficam próximas a estação. O menu: café com leite no copo de plástico e um saquinho de pão de queijo com dez unidades, total: 3 reais, preço da passagem do ônibus que ele economiza pegando o trem sem pagar ao entrar por uma fresta no muro que margeia a linha da CPTM.

Tem dois irmãos homens, e a mãe, Luzia, é diarista. Todos moram na Zona Leste, em Itaquera. O pai, seu José Pinto, morreu numa briga de boteco, “culpa do álcool”, diz ela.

O lance de Felipe nos malabares é fruto dessa tragédia familiar. A mãe, desesperada com o déficit no orçamento, mandou os filhos buscarem sustento.

– Ah, meus filhos, tem que dar jeito nessa vida, tem que dar!

Ela mesma dobrou sua atividade laboral o que lhe rendeu artrite e fortes dores nas costas, aliviadas com remédios que retira mensalmente no SUS.

Eram garotos ainda quando tiveram de abandonar os estudos e paixões, no caso de Lipe, a escolinha de futebol, onde despontava como volante driblador e habilidoso que sonhava vestir a camisa do Corinthians.

Do ídolo Vampeta tem o autógrafo, guardado dentro da única gaveta que possui, no quarto único que divide com os irmãos.

– A minha história é foda, mas e daí, quem tem a ver com isso?, pensa entre um e outro solavanco do busão.

Lipe sabe que sua vida é marginal. Já escutou na tevê e sempre lembra que ser pobre tem a ver com um tal de “capitalismo” que não distribui a renda, que a educação é boa para uns e nenhuma para outros e outras coisas que ele não sabe explicar bem.

Lipe sabe que não ter estudo o condena ao ostracismo cultural e profissional, por isso, decidiu que o farol, por mais contraditório que possa ser, vai salvar sua vida. E que vai ganhar o máximo que puder para ajudar a mãe e se ajudar. Lipe quer fazer educação física e ser preparador físico do timão. Felipe sonha, ora, como qualquer garoto de sua idade.

Observador, sabe que ninguém gosta de gente pedindo esmola na janela do carro.

– É um saco quando, em todo e qualquer farol, aparece alguém jogando bolinhas ou bastões para o alto na tentativa de te convencer de aquele é um talento que mereça ser remunerado – ouviu Lipe, certa vez.

Felipe sabe disso. Mas não há tempo a perder.

– E a concorrência, meu irmão, é grande – repete para si mesmo.

Muito esperto, ele sabe que assalto, violência e a indiferença são o maior entrave ao seu "negócio" no farol. Mas ele não tem pena de si mesmo. Deixa para os outros.

E a cena se repete, diariamente: sobe a primeira bola velha de tênis, a segunda, a terceira e na quarta... todas vão ao chão. As recolhe, vai de novo: primeira, segunda, terceira, chão. Repete o gesto, calculadamente, e há 30 segundos do verde, sai desanimado para a calçada.

Felipe se faz de derrotado. Motoristas que, normalmente, estão mais preocupados com o tempo que perdem ali, se comovem. E os comovidos o chamam com notas e moedas. Uns continuam não ligando e até dão risada.

Pena e culpa é a “sensação de merda” que sente o motorista Jurandir, aquele do SUV, e que Lipe usa a seu favor. Enquanto a concorrência acerta os malabares Lipe sempre erra, de propósito, e ganha seu dinheiro com isso, bem mais do que os outros, porque, nesse caso, percebeu que o erro comove mais do que o acerto.

Errar é a isca de Felipe. E isso vai sustentar sua casa. Quem sabe, realizar seu sonho e vencer o sistema que o condenou. Educado, ele agradece.

– que deus te dê em dobro.

Thiago Domenici, jornalista

3 comentários:

Fernanda Pompeu disse...

Aí, Thiago. Boa prosa. Informação mais emoção. A receita é a imaginação com os pés no chão. Escreva mais!

Anônimo disse...

bravo, thiago! belíssima e inspiradora crônica!

Anônimo disse...

Bom texto, Thiago.
Aliás, o número de "iscas" em São Paulo é enorme.
Ali pelas ruas dos Jardins há um menino de seus 12 anos, moreno e que tingiu o cabelo de loiro.
Ouvi a vendedora de um café perguntar porque ele havia tingido o cabelo e o menino respondeu de batepronto: "marketing", assim mesmo, "marketing".
Ele passou a vender mais balas, chicletes ou toalhinhas de prato com o novo cabelo.
Embora na UTI, o neoliberalismo continua fazendo escola.
Izaías Almada

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