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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sábado, 28 de janeiro de 2012

A revolta era tudo que eles tinham

Amanhã faz uma semana da reintegração de posse no Pinheirinho, em São José dos Campos. Abaixo, o relato do jornalista Rodrigo Mendes de Almeida, colunista do NR, que foi ver de perto a ação policial e a desolação dos desabrigados. É um relato subjetivo, diante do bombardeio de informações ao longo da semana. O texto é uma tentativa, como diz Rodrigo, de “dividir um pouco do que senti estando no local de uma tragédia”.
 
Nunca havia visto nem sentido nada que se aproximasse do que senti no Pinheirinho. O clima era de terror e pânico. A desorientação das pessoas que não entendiam como podiam ser violentadas de forma tão brutal era evidente, um sentimento pungente de desolação.

O desamparo de gente que tinha uma casa, que tentava construir uma vida e que, de uma hora para outra, estava na rua, pedindo ajuda para beber água e comer. Uma tragédia calculada minuciosamente, com frieza, e levada a cabo com requintes de crueldade que nenhum tipo de política pode explicar. O saldo: cerca de nove mil pessoas jogadas na rua, alguns mortos, muitos feridos. Vidas arruinadas.

Nosso grupo andando pelo bairro vizinho ao Pinheirinho, em São José dos Campos, chamava muita atenção. Não tinha como passarmos despercebidos, éramos claramente de fora.

Sem contar o fato de que, no Campo dos Alemães, todos estavam fora de suas casas. O bairro é vizinho ao Pinheirinho e suas ruas estavam lotadas. Todos em silêncio, olhares atentos. Muito pesado, muito tenso. Todos com medo. O Pinheirinho estava isolado pelas barreiras da tropa de choque.

Muitos jovens de bicicleta: adolescentes, pré-adolescente e pós-adolescentes. As crianças ficavam enrodilhadas nos pés dos pais. Bastava um sinal de polícia despontando, a algumas esquinas de distância, ou sendo precedida pela luz da sirene, a correria era geral. Não importava quem: todos estavam com muito medo da polícia e de suas bombas e tiros.

Os jovens, os adultos, todos saíam do caminho. Isso porque, como alguns moradores nos disseram, não podia haver nenhuma aglomeração, nenhum grupinho de três, quatro pessoas que, se a polícia visse, de longe já começava a atirar com bala de borracha e usar bombas de efeito moral.

Dobrando à direita em direção ao que seria o alojamento preparado para receber os recém-desabrigados, vi uma mãe andando a esmo com um cesto de bebê num braço, segurando uma criança pela mão do outro. Em vez de um bebê dentro do cesto, um filhotinho de cachorro, todo preto, não mais velho que alguns dias.

Penso em quantos animais foram deixados para trás, como parte da mobília das casas, para serem “demolidos” junto das casas.

Talvez aquela família estivesse a caminho da igreja, onde havia a maior concentração de pessoas que foram expulsas de suas casas naquele domingo. Foi para onde fomos. Lá, conversando com uma liderança do movimento, ouvi que essa ação foi diferente. “Nunca vi nada igual”, disse. Em geral há um verniz democrático, republicano, de cumprimento da lei. Naquele dia, o oficial da justiça federal foi expulso a bala de borracha.

Isso foi para o oficial de justiça, pois, diferente do que foi dito, a polícia usou, sim, bala de chumbo.

Havia algumas centenas de pessoas na rua, em frente à igreja, esperando o padre abri-la. Ninguém sabia dizer por que a polícia não dispersava apenas aquela concentração de gente – com grupos muito menores havia bem mais violência.

Um carro de som
pede água aos vizinhos


Ouço que não há nenhuma certeza de quem morreu, de quem pode ter morrido, mas que com certeza ocorreram falecimentos. Teve gente que tomou tiro de bala de borracha. Teve gente que tomou tiro de bala de chumbo. Alguém me conta que, até pouco antes, o helicóptero da polícia – que, naquela altura, ainda rondava acima de nossas cabeças, com potentes holofotes apontados para nós – era quem lançava parte das bombas.

Eu via pessoas com malas. Via alguns carros carregados. E via algumas pessoas sem nada. Alguém usa o carro de som para pedir aos vizinhos que tragam água, pois os desabrigados não tiveram nem como beber água durante o dia.

Converso com um senhor, que diz que não conseguiu pegar nada de sua casa. Pergunto o que “eles” falaram, se daria para pegar depois seus pertences. Ele afirma que deveria dar, mas que não havia nenhuma segurança de que sua casa estaria inteira ainda. “Eu era o músico da cidade”, explica ele, “era com a minha aparelhagem que o pessoal fazia as assembleias, na igreja evangélica”. Presto atenção ao tempo verbal, “era” o músico da cidade. E como fazer agora, sem aparelhagem?

Mesmo na noite escura, pude ver seus olhos marejarem. Ele levanta o boné, passa a mão na cabeça engolindo o choro. Levanta a mão que tinha uma sacola de plástico e oferece: “Vamos tomar um café. Está com adoçante mas está bom”. Recuso gentilmente. Nada passaria na minha garganta. “E água? Tem água também...”

Na rua do lado, várias pessoas faziam barricadas, queimando o que parecia ser um sofá. Começaram a quebrar as placas das ruas para alimentar o fogo. Pegavam tudo que tinham à mão e que não pertenciam a ninguém para alimentar o fogo. Já tínhamos passado por várias barricadas daquela. A primeira, inclusive, na maior avenida, já estava até apagada com os restos de um carro, inidentificável.

A revolta era tudo que eles tinham. A força dos policiais, a arbitrariedade com que eles trataram aquelas pessoas levou a isso. Um grupo de uns oito meninos, vindo da direção da barricada, passa de bicicleta – sempre as bicicletas – e ouço um deles “bora, lá em casa tem álcool”.

Eu nunca tinha vivenciado nada assim. Parecia guerra mesmo ou como imagino ser uma. Qualquer barulho assusta. Ao andar pela rua dava para sentir a respiração das pessoas e a tensão. A opressão de se estar cercado de um monte de soldados armados até os dentes. Bombas estourando ao fundo se tornaram um barulho comum. Volta e meia acontecia alguma coisa e um monte de gente saía correndo de algum lugar.

Companheiros foram aos hospitais da cidade em busca de informações. Segundo relataram, os médicos e funcionários negavam que tivesse chegado qualquer pessoa do Pinheirinho. Mas conversando com outras pessoas, o vendedor de cachorro quente da porta do hospital, o outro paciente que ainda estava na sala de espera, todos contam, de forma unânime, das pessoas que viram chegando, ensanguentadas, arrebentadas.

Várias pessoas. Crianças. Inclusive uma de três anos, que foi a primeira vítima confirmada da operação – corroborando a história que havia circulado do lado de fora da igreja. Nos hospitais, policiais militares circulavam pelos corredores. Havia uma deliberada e ordenada sonegação de informações.

Depois que as pessoas entraram na igreja, resolvemos ir embora, já que as portas seriam fechadas. Passando pelas ruas cada vez mais desertas, ainda víamos algumas pessoas em silêncio, só olhando tudo que acontecia em volta. Com medo. Em uma praça, uma biblioteca queimava, completamente incendiada.

Nós ainda chamávamos atenção. Mais do que as barricadas em chamas.

Rodrigo Mendes de Almeida, jornalista e editor de livros, especial para o NR. Foto do cachorro no pós-reintegração de Victor Moriyama, também colunista do NR, realizada para o jornal O Vale, São José dos Campos.

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