A morte de Millôr me fez recordar dos meus anos de leitora do Pasquim, jornal que ele abrilhantou. Para quem não teve a oportunidade: o tablóide nasceu no Rio de Janeiro em junho de 1969. Imagine o contexto: o AI-5 havia sido decretado em dezembro do ano anterior. Perceba a ousadia de lançar uma publicação atrevida no meio das botas.
O Pasquim morreu antes de morrer. Oficialmente, ele durou vinte e dois anos. Mas na realidade foi importante nos seus primeiros cinco anos. O que dá uma lição: os projetos inovadores têm uma duração efêmera, depois tendem a se institucionalizar. Aí eles se tornam enfadonhamente previsíveis.
Millôr ao lado do Tarso de Castro, Ivan Lessa, Paulo Francis, Sérgio Augusto, Sérgio Cabral formavam a boa turma da máquina de escrever. Como disse o Jaguar: "O Pasquim tirou o paletó e a gravata do jornalismo brasileiro". A turma também criou entrevistas memoráveis. Sem edição, deixavam o papo rolar para delícia e espanto dos leitores.
Jaguar foi quem deu o nome Pasquim ao nanico, se antecipando aos detratores. Além dele, nos desenhos estavam Claudius, Prósperi, Henfil, Fortuna, Ziraldo, Juarez Machado. O que o jornaleco tinha de bom? A irreverência do texto, o humor das charges e tiras, a postura genial de acreditar no riso em tempos absolutamente sisudos.
Sisudo do lado da direita que mandava no país, prendia, torturava e matava seus opositores. Sisudo do lado da esquerda organizada que achava que os tempos não eram para fazer graça, e muito menos cosquinhas nas páginas impressas.
Fala-se muito que o Pasquim era Ipanema. Eu não o percebia assim. Garota de treze anos, eu o lia na barca Rio-Niterói. Trajeto que nada tinha a ver com Ipanema. Para mim, o Pasquim era imenso. Ele era o Brasil inteligente. Um sopro de invenção com cheiro de tinta fresca.
Seus redatores, em particular Paulo Francis, me encantavam. Eu não entendia tudo o que eles escreviam. Mas sentia o estilo. Intuía a força de um texto que queria ser texto e, não só, como aconteceria depois na imprensa, um mero veículo para as ideias circularem. Havia prazer na escrita e nos cartuns.
Visto com meu olhar de hoje, muita coisa me desagrada no Pasquim da minha adolescência. A redação era um clube do bolinha. Havia um machismo que aparecia aqui e ali, e um certo preconceito contra os gays. O que nos dá outra lição: por mais inspirada que uma equipe seja, ela não transcende a sua época. Com as honrosas e raras exceções, é claro.
Essa crônica começou evocando o Millôr Fernandes. Nada mais justo que termine com ele. O cara de mil talentos e "livre como um táxi" escreveu, traduziu, desenhou. Percebeu a força da internet antes de muita gente. Foi um frasista de pena cheia. Autor de um haikai que carrego decorado: "Esnobar / É exigir café fervendo / E deixar esfriar".
Evoé, Millôr!
fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto.
3 comentários:
Tempos sisudos, que lembramos para não esquecer... e jamais repetir. Mas o Pasca era o Pasca. E Millor é Millor.
Graças a alguma força elemental - talvez a Sorte - ninguém nunca me disse "eu penso igual a você". E eu bem que procuro a chamada "minha turma", mas mal se forma um grupo eu sinto que não é bem aquilo que quero para o meu futuro, e busco uma nova perspectiva. Leio seu texto como li o Pasquim, como estudei o Millor: quero conhecer sua perspectiva, aquilo que lhe dá a dinâmica para continuar. Salve Millor. Mas hoje, salve Fernanda. Beijos jsavio
gostei, querida !!!!
Da República Dominicana com muito carinho para vocês
Seu amiga de sempre !!! ver vocês em Sampa pronto!!!
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