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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Quem diria

Não adianta. Apesar das muitas indicações em contrário, eu acredito na solidariedade e na amabilidade. Gente é uma raça complicada, sem dúvida, mas o tempo todo desmente as expectativas e os estereótipos. Quer ver?

Eu viajava sozinha pela Jordânia e, por insistência dos jordanianos, resolvi conhecer Petra, uma cidade escavada nas rochas por uma civilização que desapareceu há uns dois mil anos, se não me falha a memória.

Saí de Amã bem cedo, numa lotação que levava uns seis homens árabes, um casal de turistas espanhóis bem jovens e eu. Duas horas depois, o carro me deixou numa aldeia de uma rua só, que terminava numa feira onde havia vários camelos à venda, além da produção agrícola local. Avisaram que Petra ficava mais adiante, e era necessário tomar um táxi para chegar lá.

Eu precisava de um banheiro com muita urgência e não tinha a menor ideia de como consegui-lo. Foi me entrando aquele medo do lugar remoto e desconhecido, agravado pelo fato de estar sozinha numa comunidade árabe muçulmana, um perigo certo. Sem alternativa, saí andando pela rua e perguntando às pessoas onde podia encontrar um “toilet”, uma das palavras essenciais que felizmente dispensam tradução.

Ao passar por uma birosca meio armazém meio restaurante meio bar, um homem me fez sinal para entrar. Árabe, vestido de árabe e certamente muçulmano, tudo o que temos aprendido como a encarnação do mal, do ódio e da violência, e eu uma mulher branca, obviamente ocidental e cristã, um alvo altamente preferencial.

Senti um frio na espinha e um impulso de sair correndo, mas a urgência fisiológica era tanta que resolvi arriscar. Entrei e ele me sinalizou que o acompanhasse. Saiu andando por um labirinto de portas e escadas que passava por dentro de casas e quartos e não acabava nunca. Meu coração queria sair pela boca.

Lá pelas tantas, ele parou e me indicou uma porta. Estávamos só nós dois ali, e eu tive quase certeza de que seria estuprada, esfaqueada ou asfixiada em poucos minutos, a muitos mil quilômetros de casa e de qualquer pessoa conhecida.

Entrei pela porta indicada. Era um banheiro, com uma latrina de louça, uma pia, papel higiênico e toalha. Fiz tudo o que precisava, me lavei, refresquei e sequei, imaginando que se, ao sair, não encontrasse ninguém, levaria muito tempo para encontrar o caminho de volta à rua.

Quando abri a porta, ele estava ali, calmamente esperando. Guiou-me de volta pelas vielas e me devolveu à rua. Com uma gratidão que poucas vezes senti na vida, ofereci-lhe uns dólares de recompensa, que ele recusou com veemência, quase ofendido.

Segui meu caminho a Petra aliviada e feliz por ter confirmado, mais uma vez, minha velha crença na generosidade de estranhos. As ruínas, que vão aparecendo aos poucos e de repente se mostram em todo o seu esplendor, estiveram totalmente à altura da ocasião.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

5 comentários:

Anônimo disse...

junia querida,
semre me preocupei com suas constantes andanças por esse imenso mundo de Deus.Você nunca me contava dos perigos enfrentados, mas eu sabia pelo coração de mãe. A clareza com que voce descreve a cena me faz enxergar um pouco do que se passou pela vida afora. Vc continua tão fiel em seus relatos que dá até para a gente sentir certo frio na espinha,como se diz.
Vá em frente. Competência vc está mostrando.

Beijos da mummy dircim

Shirley disse...

Querida Junia, acho que essa é uma crença que sempre nos aproximou e que me fez enxergar em você afinidades que eu nem sabia direito por onde ia. Pois essa é uma delas: também e ainda acredito na solidariedade humanda, na gentileza, na generosidade, mesmo diante de muitas e cotidianas provas em contrário.
Noutro dia ouvi alguém dizer que a pior coisa do mundo são as pessoas; entendi não. Pra mim, essa é a maior fonte de riqueza, o que me encanta e me assombra nessa vida. Papo pra muito chopp e uns bifes de choriço... :)

Denise Lima disse...

Junia, tenho sempre lido seus textos e tô adorando. Delícia ver a tia Dirce comentando aqui também. Saudades dela...Beijos e parabéns!
Denise do Lé

Anônimo disse...

Junia,lo asombroso es asombrarnos de que hay gente buena,bien intencionada... Tan mal prejuiciados estamos!! Me pasa y nos pasa...
Que alegria poder confirmar la hermandad, la solidaridad, la confianza entre los seres humanos...
Hermoso y profundo tu relato, como siempre!
Beso, Norma

geraldo ferreira monção disse...

Júnia,
É dia de Páscoa! A celebração é uma coisa, e a vivência da mensagem pelo coletivo anda bem distante.
Pois bem, o seu texto revela a solidariedade de quem discriminamos, no caso, o muçulmano, como poderia ser o negro, a mulher, o pobre. É um tapa de luva em nossa hipocrisia ocidental cristã.
Feliz Páscoa!
Geraldo Monção

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