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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Notas sobre uma guerra que não me pertenceu

Borges dizia que se há algo que não existe esse algo é o esquecimento.

Na Espanha pós-Franco, os responsáveis pela transição democrática ignoraram a sentença do escritor argentino e fizeram de conta que a Guerra Civil Espanhola – que cobrou cerca de meio milhão de vidas – nunca havia existido.

A Morte do Soldado Legalista, de Robert Capa,  fotografia
das mais conhecidas sobre a Guerra Civil Espanhola
Espalhadas por praticamente todo o país, há cerca de duas mil valas comuns onde jazem por volta de cem mil vítimas da guerra. Pouco mais de 10% dessas valas foram abertas. O mais assustador é que muitos dos familiares sabem onde estão enterrados os seus. Apenas querem que eles sejam identificados e ganhem uma sepultura digna, para que deixem de ser “desaparecidos”.

Os que defendem que não se deve voltar a tocar nessa ferida dizem que isso é passado, aconteceu há muitas décadas, e que é preciso seguir adiante. Mas os fatos desmentem essa afirmativa.

1) “Na minha casa a Guerra Civil é presente, se fala dela, se vive ela. Minha mãe paralisou sua vida por quase 30 anos até encontrar meu avô”, me conta um conhecido. Seu avô, para salvar a vida, partiu para o México. Depois de décadas conseguiu reencontrar a família. Para eles é impossível esquecer algo que determinou suas vidas.

2) Henrique sofre de Alzheimer. Não se lembra de praticamente nada e não reconhece ninguém. Quem cuida dele são os vizinhos, já que não tem família. Não tem família porque na época da Guerra Civil seu pai foi assassinado, seu irmão teve que fugir para outro país e sua mãe foi enforcada, mas não morreu (viveu até os 93 anos).

Quando ainda era possível estabelecer uma conversa, Henrique contava sobre o episódio, mas nunca disse se assistiu à tentativa de execução da mãe. Hoje ele quase não fala e se comportava como uma criança – joga no chão a comida, rasga revistas. Quem cuida de Henrique gostaria de acreditar que ele também esqueceu o que aconteceu durante a guerra, mas seu olhar perdido diz o contrário.

3) Há alguns meses fui a uma exposição de fotos sobre a Guerra Civil. Eram instantâneas que retratavam lugares destruídos, famílias em fuga, hospitais e centros de acolhida de órfãos. As fotos me tocaram, mas aquela guerra não me pertencia; me pareciam algo distante no tempo e no espaço. Logo percebi que não era tanto assim.

Vi um casal de idosos, ela amparando ele pelo braço, olhando uma das imagens detidamente. Estavam muito próximos do retrato, talvez pela miopia. Eu passava ao lado deles quando ela sentenciou: “Sim, isso aqui é em Valência, eu me lembro desse lugar, nós passamos por lá”.

Ricardo Viel, jornalista, escreve às segundas, de Salamanca, Espanha.

5 comentários:

Fernanda Pompeu disse...

Muito bom, Ricardo. A passagem do tempo não autoriza o esquecimento.
Aliás, entre os direitos humanos, está o da memória. Borrachas podem apagar frases, mas não o passado das pessoas e do coletivo.

Viel disse...

Fernanda, querida, cada vez mais me convenço de que Benedetti tinha razão quando dizia que o esquecimento está cheio de memórias. Há que recordar, seja o que de bom e o que de mau aconteceu. Seguimos!

Anônimo disse...

Ricardo, seu texto é maravilhoso. Eu me emociono sempre, não perco uma segunda-feira. Acho que homens como você, com esta perspicácia, com este olhar sensível, não existem mais. Continue alimentando e nos alimentando com esta sensibilidade. Você tem o dom das palavras. Parabéns e obrigado.
Alessandra Tavares, Santos.

Viel disse...

Oi, Alessandra. Nem sei o que responder, viu. Obrigado mesmo. Essa mensagem renova meu ânimo pra seguir escrevendo. Nos vemos na próxima segunda então. Um abraço

Moriti disse...

Parabéns, Viel. Mandou muito bem, pra variar. Abraço.

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