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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Estrelas do IgNobel

Desde 1991 esperada com a mesma ansiedade do Nobel
Passei a noite da quinta-feira assistindo ao vivo pelo YouTube, diretamente do auditório da universidade de Harvard, à cerimônia de gala do prêmio IgNobel. Temi um pouco por minha sanidade mental ao constatar que apenas 480 pessoas no planeta estavam ligadas no YouTube no momento do grande evento, mas não me arrependi.

A festa é a culminação dos trabalhos da organização Pesquisa Improvável, com sede em Harvard, que passa o ano analisando mais de 20 mil revistas científicas para escolher os mais bizarros e, aparentemente, inúteis papers acadêmicos até culminar na escolha dos dez laureados da cerimônia.

A organização diz que são escolhidos trabalhos que primeiro fazem rir e depois pensar. Desde 1991, quando foi feita a primeira premiação, a lista é aguardada por cientistas de todo mundo com a mesma ansiedade do prêmio Nobel sueco. E os premiados de 2012 não decepcionaram.

Emmanuel Ben-Soussan e Michel Antonietti (França), premiados na categoria Medicina, detalharam num trabalho publicado os procedimentos preventivos de uma colonoscopia, para evitar os riscos de explosões de gases durante o exame, quando se usam eletrodos ou laser de cauterização nas entranhas intestinais, que podem estar empestiadas de hidrogênio e metano altamente inflamáveis, especialmente se as dobras do órgão contiverem matéria fecal bloqueando a vazão.

Em Neurociência o prêmio foi para Craig Bennett e equipe (EUA) por um detalhado trabalho de ressonância nuclear magnética mostrando como detectar atividade cerebral num salmão morto.

O prêmio de literatura foi para Controladoria Geral do Governo dos EUA que publicou um inacreditável relatório acerca de relatórios sobre relatórios que recomenda a preparação de um relatório sobre o relatório acerca de relatórios sobre relatórios. Esse foi o único premiado que não achou a menor graça e não mandou o burocrata responsável para a cerimônia e nem respondeu aos pedidos de comentários por parte da imprensa.
 O rabo de cavalo de Raymond Goldstein (Reuters)

A Física, a rainha das ciências de Newton e Einstein, foi para Joseph Keller (EUA), Raymond Goldstein (Inglaterra) e equipe, pelos complicados cálculos de equilíbrios de forças que atuam dinamicamente num rabo-de-cavalo, numa equação que tem até um coeficiente batizado de Número de Rapunzel, mostrando que eles balançam como um pêndulo harmonicamente na lateral, e não para cima e para baixo como esperaria o senso comum.

Em anatomia o troféu foi para Frans de Waal e Jennifer Pokorny (EUA), que descobriram e provaram que os chimpanzés são capazes reconhecer uns aos outros, sem olharem suas caras, por meio de fotografias dos seus traseiros.

A cerimônia, evidentemente, foi hilária. Para contrastar, nada menos que sete prêmios Nobel de verdade compareceram ao palco e participaram da entrega dos troféus, que nesse ano foi uma ampulheta de areia que simbolizava os grãos do Universo.

Também foi apresentada uma ópera sobre o design inteligente do cosmo, uma sátira ao criacionismo. Só que o design no caso era um estilista de vestido que tentava satisfazer uma cliente fútil em busca da roupa universal. A dupla consulta astrofísicos cantantes para obter e receita.

O palco era um caos: varredores que recebiam elogios pela atuação nos bastidores e que tinham muito trabalho limpando a chuva de aviões de papel disparados pela platéia. A iluminação era provida por lanterninhas de roupa prateada que substituíam os holofotes, num estilo meio punk e vanguardista.

Tendo gargalhado bastante ao longo de quase duas horas, ao final, como exorta a organização, comecei a pensar. Lembrei que cientistas, aparentemente pessoas sérias, se dedicam a paródias mais frequentemente do que imaginam as pessoas leigas.

Fiz uma resenha sobre a mais clássica delas, retratada no livro Fausto em Copenhague (quem se interessar está em http://flaviodecarvalho.multiply.com/reviews/item/21).

Fausto em Copenhague gira em torno de uma troça. Em 1932, todo mundo na Alemanha promovia comemorações do centenário de nascimento de Wolfgang Goethe, e os estudantes resolveram fazer também sua paródia de Fausto, a obra máxima do gênio alemão.

Era apenas uma peça estudantil que foi encenada ao fim dos trabalhos, para relaxar, na mansão em Copenhague que abrigava o instituto de física teórica no térreo e a residência familiar de Bohr no segundo piso.

Gino Segrè, o autor do livro, inspirou-se no script original da peça, traduzida e guardada pelo russo George Gamow (a quem o livro é dedicado). Caricaturista com certo talento, Gamow rabiscou as charges que ilustram a peça, reproduzidas na obra de Segrè.

O bondoso Deus da peça era um estudante mascarado com traços caricaturais do patriarca da mecânica quântica, Niels Bohr, que assistiu à chacota na primeira fila, no auge do seu prestígio aos 47 anos. Mefistófeles, o demônio, era encarnado pelo terrível Wolfgang Pauli.

Albert Einstein aparecia como um personagem que não existe na obra de Goethe: o rei das pulgas, que atormentava toda a corte científica com suas tentativas de unificar a física com uma teoria geral de campos (que nunca deu certo) e as insistentes críticas à mecânica quântica. O futuro Nobel Paul Dirac, uma pessoa introvertida, era o pianista do fundo musical.

Portanto, que cientistas sérios se entreguem a presepadas desse tipo não é muito surpreendente. Mas o que pensei mesmo depois de rir muito foi que a premiação está mudando seu caráter. Nos primeiros anos a maioria dos escolhidos ficava constrangida e poucos se arriscavam a comparecer ao auditório em Harvard. Mas com o passar dos anos os concorrentes foram perdendo a vergonha e até passam a cobiçar a láurea.

Especialmente depois que um dos premiados pelo IgNobel também ganhar o Nobel de verdade em 2010. Esse feito é do holandês Andre Geim que ganhou o Ignobel por fazer levitar sapos usando magnetos supercondutores e que o Nobel pela invenção do grafeno.

 "Spotlight Humano" lança uma luz sobre o orador Kirshner
O fato do IgNobel agora ser também cobiçado, levanta a suspeita de esteja ocorrendo trapaças e fraudes na disputa desse prestigioso prêmio. Um dos sintomas disso foi a presença de vários ignóbeis dos anos anteriores marcando presença agora todo ano no palco, como a russa inventora de um sutiã que se transforma em máscara respiratória e a do médico que ganhou no ano passado com o trabalho sobre cócegas no esfíncter para curar soluços.

O ganhador do prêmio de Neurociência de 2012 confessou que estava cometendo uma espécie de fraude “bem intencionada” pois sabia que salmão morto não tem atividade cerebral significativa. Diz ele que fez isso para denunciar a inundação de trabalhos com neuroimagens que não provam nada. Foi premeditado, portanto. Isso não desvirtuaria o sentido original da premiação? Talvez não.

Em 1996, o físico Alan Sokal submeteu um texto à revista Social Text, a principal publicação da área de estudos sociais pós-modernistas dos EUA. Tratava-se de um amontoado de coisas sem sentido, mas com uma linguagem esotérica e impenetrável, com o título “Transgredindo limites: em direção a uma hermenêutica da gravidade quântica”.

O artigo, como explicou o próprio Sokal, era “um pastiche de gírias esquerdistas, referências bajuladoras, citações grandiosas e referências nonsense estruturadas ao redor de frases tolas de acadêmicos pós-modernos” – aqueles acadêmicos que acham que tudo na vida são construções culturais.

Por causa do escândalo, quando o trote foi revelado, a revista Social Text, desmoralizada, foi fechada. O pensamento final, depois de rir muito, é, portanto, que a galhofa tem seu lugar importante na ciência e é aceita com alegria e bom humor. Infelizmente o mesmo não acontece com outra instituição que ao longo de milênios se julga ter o monopólio das revelações e do conhecimento, a religião. Para eles simples ironias e brincadeiras com seus ídolos ainda continua sendo punida com a morte e a violência troglodita.

 

Flávio de Carvalho Serpa, jornalista, especial para o Nota de Rodapé

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