.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Herivelto 100. Brasil 41

Ele formou sua própria Escola de Samba, ensaiou o coro de pastoras e colocou o samba pra frente, ajeitando a pancadaria. Diretor de harmonia de suas gravações, desenvolveu um novo formato para registros em discos e apresentações em rádios: já não era orquestra, nem tampouco conjunto regional, era a sonoridade dos carnavais de rua invadindo os estúdios. Autor de clássicos de nosso cancioneiro, travou parcerias com gigantes e foi gravado pelos maiores cartazes de sua época. É tempo de celebrar Herivelto Martins, um nome de ouro da cultura brasileira.

Ícone de nossa música popular, o sambista nasceu há 100 anos, na pequena cidade fluminense de Engenheiro Paulo de Frontin. Bons costumes se aprendem em casa, desde a tenra infância, e assim se deu com o pequeno Herivelto. Em seu lar, respirava-se cultura e tudo conspirou para fazer dele um ser dotado de inspiração artística. Com seu pai, Felix Bueno Martins (um entusiasta do teatro, promotor de várias peças amadoras), tomou gosto pelo teatro e pela música. Aos nove, compôs seu primeiro samba, “Nunca mais” e depois, adolescente, foi ganhar os picadeiros da vida, arriscando-se como palhaço em cidades vizinhas.

A veia artística pulsava e a também pequena cidade de Barra do Piraí, onde morava com a família desde os 4 anos, não poderia comportar suas ambições. Aos 18, após breve passagem por São Paulo, decidiu: iria se mandar para o Rio de Janeiro. Queria conhecer o berço do samba, o bairro do Estácio de Sá, e os bambas locais, professores do novo ritmo do samba.

Na então capital da República, Herivelto conheceu o compositor Príncipe Pretinho que o levou para o Conjunto Tupi, do cantor J.B. de Carvalho. Sagaz e atento às possíveis novidades que poderiam ser inseridas no arranjo das músicas, desenvolveu com o cantor Francisco Sena, uma nova maneira de cantar em duetos. Em vez de se valer do formato “pergunta e resposta”, como Francisco Alves e Mario Reis faziam, agora, os cantores atuavam juntos, com um deles alterando a melodia, cantando em terças. Foram pioneiros de um estilo que depois apresentaria grupos como Quatro Ases e um Coringa, Bando da Lua e Demônios da Garoa.

Com Francisco Sena, descolou-se do Conjunto Tupi e formou a Dupla Preto e Branco. Eram os anos 30 e as composições de Herivelto começavam a ser gravadas por nomes como Aracy de Almeida, Silvio Caldas, Carmem Miranda e Carlos Galhardo. Entretanto, a inesperada – e precoce – morte de seu companheiro o obrigou a voltar aos picadeiros da vida.

Com a obrigação de gargalhar, encarnou o palhaço Zé Catimba e passou a apresentar-se no Teatro Pátria, em São Cristóvão. Foi lá que conheceu Nilo Chagas, com quem formaria a segunda Dupla Preto e Branco. Também foi neste teatro que conheceu Dalva de Oliveira, sua futura esposa. Com ela e Nilo Chagas, iria compor o Trio de Ouro, conjunto vocal que marcou época na história da música popular brasileira (e que depois teria mais duas formações, com Herivelto à frente).

Apogeu do
sambista

Antes de se separarem e darem início a uma famosa – e depois global – polêmica, Herivelto e Dalva protagonizaram belas peças. O Trio de Ouro era inovador e se apresentava com uma legítima Escola de Samba e um coro de pastoras. Herivelto comandava tudo com seu apito – e apita quem pode apitar –, legando para nossa cultura fonográfica uma nova maneira de se apresentar os sambas. Até mesmo o clima festivo e de folia carnavalesca era transmitido pelos integrantes do conjunto nas gravações.

Nos anos 40, Herivelto alcançou o apogeu. Tudo o que um compositor poderia almejar, ele conquistou. Emplacou grandes sucessos, como “Praça Onze” (com Grande Otelo), “Ave Maria no Morro”, “Lá em Mangueira” (com Heitor dos Prazeres), “Isaura” (com Roberto Roberti), “Laurindo”, entre tantos outros. Além das históricas e seminais gravações do Trio de Ouro, foi gravado pelos maiores intérpretes da época, como Francisco Alves, Linda Batista, Isaurinha Garcia e Roberto Silva. No campo da criação, travou parcerias com grandes compositores como, por exemplo, Ataulfo Alves, Benedito Lacerda, Grande Otelo, Bide, Heitor dos Prazeres, Marino Pinto, David Nasser e Príncipe Pretinho.

Cronista social de um Rio de Janeiro onde tanto malandro viveu, onde tanto valente morreu, Herivelto cantou a Praça Onze – seu desaparecimento físico e simbólico –, cantou Mangueira – seu morro e sua Escola de Samba – e cantou a cidade do Rio de Janeiro. Cantou os amores de uma gente, com seus encantos e com seus penosos reveses.

Versátil, Herivelto Martins compôs, também, muito samba-canção, valsa e até mesmo tango. Viveu até os 80 anos e deixou para a eternidade uma obra que acompanhou, ao longo de décadas, as transformações sociais e culturais que se acometeram sobre nosso país. É notória a percepção de como ele acompanhou a sensibilidade musical do ouvinte, fã, consumidor de seu produto. Se na Era de Ouro do rádio, emplacava sambas, pois isso era o que o povo consumia, depois, com a ascensão do bolero e do samba-canção no gosto das massas, ele passou a compor intensamente canções mais lentas, fazendo de Nelson Gonçalves seu intérprete mais frequente.

Tal ecletismo faz com que muitos sambas de altíssimo nível (como “Adeus Mangueira”, “Como eu chorei”, “Consulta teu travesseiro” e “Obrigado, General”) não sejam lembrados nas coletâneas das melhores e mais representativas composições do artista. No entanto, o samba era o carro-chefe de sua obra e foi principalmente com as gravações do Trio de Ouro, e as inovações proporcionadas pela genialidade de seu líder, que Herivelto foi lembrado por quem mais fez bonito em sua homenagem neste ano. Sua mais bela louvação veio por conta do samba, providência de Deus.

Sim, porque neste centenário do grande sambista, pouco se fez por sua memória. Diferentemente do ocorrido em anos passados, em que foram celebrados intensamente os centenários de nomes como Cartola, Adoniran Barbosa e Nelson Cavaquinho, as comemorações dos 100 anos de nascimento de Herivelto Martins não tiveram o mesmo confete. No entanto, de um grupo de amigos de Minas Gerais, formado por músicos amadores, sambistas, veio a redenção. Onde quer que esteja Herivelto Martins, ele pode ficar tranquilo. Uma homenagem à sua altura foi feita.
"O cara tem uma importância muito grande pra ser lembrado apenas pelas brigas com a mulher.”
Em Belo Horizonte, toda sexta-feira, a turma desperta, entoando um hino de harmonia. É dia de sambar até cansar. No número 41 da Avenida Brasil fica o bar Brasil 41. É lá que se reúne a roda de samba de mesmo nome. O formato é acústico, sem amplificação, com instrumentos de corda e de couro, com os sambas cantados em coro. O repertório contempla tanto compositores da Era do Rádio como sambas de terreiro das antigas Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Das rotineiras reuniões semanais nasceu um valoroso projeto, que culminou com a grandiosa homenagem à Herivelto Martins, realizada em julho e agosto deste ano, nas cidades de Belo Horizonte e Ouro Preto.

Mas tudo começou antes, em novembro de 2011. Os personagens: os mineiros Vinícius Terror, de Ouro Preto, e Daniel Capu, de Belo Horizonte. Quando o primeiro escutou, na roda de samba do Brasil 41, o samba “Controlando essa mulher” (com Benedito Lacerda), ficou maluco e foi pesquisar mais. “A cada áudio que ouvia meus olhos brilhavam ao perceber que estava diante de um dos mais expressivos compositores que o samba já teve”, diz Terror. Com a proximidade do centenário do bamba, sugeriu ao amigo Daniel a realização de uma homenagem ao baluarte, prontamente aceita. “Uma obra dessas não pode ficar guardada com tanta gente se interessando pelo bom samba hoje em dia. As canções de Herivelto foram pra nós uma grande descoberta”, completa o sambista de Ouro Preto.

Foram escolhidos 55 sambas, divididos em cinco blocos temáticos: “Exaltação à batucada”, "Tristeza, sofrimento e orgia”, “Súplica e exaltação à mulher”, “Crítica, favela e esperança” e “Exaltação à Mangueira”. Definido o repertório, era hora de ensaiar: foram cerca de 20 reuniões. “Era coisa de ensaio mesmo, com bronca do Daniel, nosso diretor de harmonia, e tudo o mais. Geralmente cada ensaio era dedicado a um ou dois blocos. Vez ou outra rolavam uns ensaios gerais, passando tudo. Teve uma vez que alugamos uma casa na roça e ficamos 4 dias só cantando Herivelto”, conta, saudoso.

Já se ouviam o som dos tamborins, anunciando que iria haver carnaval. E eles precisavam fazer um bom carnaval – ainda que fora de época – para o povo saber quem eles eram, afinal. Salve as pastoras e a bateria! Se o ritmo da batucada ficava cada vez mais redondo, era hora de formar o coro feminino. “As pastoras sempre frequentaram a roda, mas nunca tinham cantado. São namoradas e mães da galera da roda. Novamente, a ideia foi do Daniel. Elas toparam e foi tudo muito natural, pois já conheciam boa parte das músicas e estavam por dentro do processo, ouvindo Herivelto o dia inteiro. Nos ensaios, elas combinavam os arranjos do Trio de Ouro, os versos certos pra cantar, pra destacar o coro delas”, explica Terror. “Acabaram roubando a cena!”

A imersão na obra do compositor fluminense foi transformadora para o sambista. “Você lê a biografia dele e descobre que o cara era um gênio, um Pixinguinha da voz. Ele criou o Trio de Ouro e o sucesso estrondoso do conjunto se deve aos arranjos do Herivelto. Tem a história do apito, da Escola de Samba dentro do rádio. O cara tem uma importância muito grande pra ser lembrado apenas pelas brigas com a mulher. E acho que hoje, eu e a turma do Brasil 41 nos sentimos honrados, orgulhosos de ter mostrado pra um monte de gente que o Herivelto é uma brasa”.

O que se passou no dia 14 de julho, na roda de samba ocorrida em Belo Horizonte, e no dia 5 de agosto, em Ouro Preto, não dá pra ser narrado, apenas sentido. Assista ao vídeo, ouça o áudio abaixo da roda e aproveite para mergulhar na obra de Herivelto Martins no excelente blog dedicado ao centenário deste mestre, preparado pelo dedicado Vinícius Terror.



André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba, a ser publicada sempre na terceira quarta-feira do mês. Ilustração de Kelvin Koubik, artista visual e músico de Porto Alegre, especial para o texto

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.

Web Analytics