– Ãããããã, que foi que eu fiz? – disse ensonado, percebendo que engolia uma saliva seca, não a cerveja, proibida desde que sua vida alimentar estava sob controle há meses por causa da diabetes e da pressão alta.
Josélia, sua esposa, veio então com o pedido inusitado.
– Ronque mais, meu amor, por favor!
– Roncar mais? Você enlouqueceu?
– Benhê, poxa, que custa ficar de barriga pra cima mais um pouco e não virar de lado?
Sem paciência, Marildo dormiu novamente sem lhe dar atenção.
Noite após noite, Josélia o acordava na alta madrugada pedindo para ele roncar. Aquela atitude suspeita o deixou com a pulga atrás da orelha, mas o sono o vencia, e ele retomava o descanso.
– Que mulher no mundo gosta do ronco do marido? – indagava ao papagaio Ivanildo, seu bicho de estimação. Nunca obteve uma resposta satisfatória. O papagaio, de tanto ouvi-lo falar no assunto, aprendeu a repetir.
– Ronque mais, meu amor, por favorrrr! Ronque mais, meu amor, por favorrrr!
Marildo estava transtornado. Estaria sua mulher tendo delírios? Seria sonâmbula? Os 20 anos do casamento até aquele episódio fora da curva era satisfatório. Ele, um engenheiro civil conservador, aposentado, responsável por grandes obras de infraestrutura no país. Ela, por sua vez, formada com êxito em todas as etapas da aviação civil brasileira era uma comandante, das poucas mulheres a pilotar um boing em voos intercontinentais. Sem filhos, por opção, levavam a vida a quatro, já que além do papagaio Ivanildo, existia a intempestiva poodle Leonor.
Certa noite, antes de dormir, Marildo jogou a toalha:
– O barulho do meu ronco te dá prazer?
– Hummmm...
– Dá ou não dá, Josélia?
– Ahhhh, não! Quero dizer, dá, mas é de um jeito diferente...sabe?
– Não sei, não, explique!
– O meu grande sonho sempre foi ir a alguma guerra ou conflito e poder pilotar um avião de carga. É uma adrenalina! Daí que naquela noite eu sonhava justamente com isso...
– Tá, mas o que tem o meu ronco com isso?
– Era justamente o volume do seu ronco que mantinha meu inconsciente a achar que o motor do avião estava a toda potência. O avião começou a cair quando você parou de roncar...
– Não é possível...
– Acordei desesperada e te cutuquei; que delícia aquele motor! Nossa, só de lembrar fico arrepiada!
– Se controla, Josélia, por favor!
– Amorrr, preciso saber o que vai acontecer! Tento retomar aquele sonho toda noite, mas você precisa roncar, só mais um pouco vai, por favor, assim consigo chegar ao meu destino!
Thiago Domenici, jornalista
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