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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 11 de março de 2013

Era da janela


por Ricardo Sangiovanni*

Líamos muito na Faculdade de Comunicação escritos dos anos acho que 30 de Walter Benjamin – ou talvez de Bertold Brecht, ou mais provavelmente dos dois, agorinha não estou me lembrando bem – sobre o advento do rádio e tudo o que dele derivava de bom, de ruim e sobretudo de neutro.

E então ouvíamos de nossos bons professores, para em seguida reproduzirmos alegres e doutos pelos corredores, que bastava trocar, naqueles textos, a palavra “rádio” por “televisão” – ou mais modernosamente ainda por “internet” – e estaríamos diante de análises atualíssimas, como se os próprios campeões do passado tivessem voltado da tumba e acabado de re-redigi-las. E como se rádio fosse assim coisa de um passado longínquo, muitíssimo remoto.

O que – oh lástima! – jamais chegamos a ler por recomendação acadêmica foram as preciosas e mais ainda antigas crônicas, dos anos 00 e 10 do Novecentos, do arguto e perspicaz João do Rio. Mas não me atrevo a julgar meus mestres; limito-me, antes, a afirmar que nunca é tarde: agora que me vem sendo facultada essa inverossímil condição de professor universitário, vejo a meu alcance corrigir tal clamorosa lacuna. Atrevo-me então a sugerir de saída uma contribuição de João a esse precioso acervo de pensatas as quais, substituindo-se uma palavrinha, conservam intacta a análise.

“Gente às janelas” é o título da crônica, compilada no volume “Os dias passam…”, de 1912.

Pois qual rádio, qual nada! Já pelo título se percebe que está em causa invenção bem mais antiga, seguramente milenar. Conta-nos o narrador que, ciceroneando um estrangeiro que visitava o Rio de Janeiro pós-imperial, ouvira-o comentar que lhe impressionava a espantosa quantidade de gente debruçada às janelas que via ao longo do passeio de carro que faziam. Acaso estariam à espera de alguma procissão?, indagava o homem. “Porque está toda a gente sempre à janela e às portas, dando conta do que se passa na rua…”

Bem surpreso com a observação do viajante, mas sem querer transparecer que ignorasse tal evidentíssimo traço distintivo do povo carioca – do brasileiro – , nosso narrador banca que, de fato, nossa gente tem mesmo esse “defeito” – é “janeleira”. E mete-se então a improvisar canastríssima explicação para cujo “costume original” – da qual transcrevo-lhes a seguir os principais trechos:

“Sim. O carioca vive à janela. Você tem razão. Não é uma certa classe, são todas as classes. Já em tempos tive vontade de escrever um livro notável sobre o “lugar da janela na civilização carioca”, e então passeei a cidade com a preocupação da janela. É de assustar…”

Fornecida a premissa, prossegue com a enumeração de algumas evidências empíricas de caráter mais geral:

“À janela brincam as crianças, à janela compram-se coisas, à janela espera-se o namorado, à janela namora-se, salta-se, ama-se, come-se, veste-se, e dá-se conta da vida alheia, e não se faz nada. Principalmente não se faz nada…”

Logo, aluno da boa retórica, depreende conclusão geral a partir de observação recortada:

“Ali tem uma senhora idosa, atentamente olhando. Já não vê; já nada no mundo a pode interessar. Está ali por estar, porque vendo muita gente é que melhor se isola uma pessoa. Olha, não vê, e está à janela, sempre à janela, porque a janela é a escápula do lar sem dele sair, é o conduto da rua sem seus perigos, é o óculo de alcance para a vida alheia, é a facilidade, a economia, o namoro, o amor, o relaxamento, o fundamental relaxamento…”

Até concluir, menos científico que cheio de brilhante lucidez (como Benjamin, como Brecht):

“Há tanta gente à janela, porque, realmente, sem o saber, um instinto vago lhes diz que vem aí o péstito ou a procissão. Apenas não sabem qual é o préstito. Não saber, e ficar, e não ver, e continuar, e continuar, é o que se chama esperança. Nós somos o povo mais cheio de esperança da terra – porque vivemos à janela.”

Vocês me desculpem, mas aí, a esse ponto, não me contenho e acrescento irresponsavelmente à História um fato que, se não corresponder à verdade, bem que poderia: Roberto Marinho leu certa feita essa crônica de João do Rio, substituiu “janela” pela palavrinha mágica – “televisão” – e gritou eureka! pelado no meio do banho: acabara de descobrir que não haveria território mais fértil do que o Rio de Janeiro para iniciar seu império global; e que não haveria povo mais propício à conquista do que esse nosso esperançoso povo brasileiro.

Consolidados os domínios de cujo império – em 2011, 96% dos lares do Brasil já haviam sido conquistados – , trocar hoje em dia “janela” por “internet” é só questão de atualizar a tecnologia.

Enfim: bem mais sorte que nós teve João do Rio, que, crítico contumaz do ritmo acelerado dessa vida urbana e exímio escarafunchador do universo da rua que era, não viveu para ver no que esse progresso todo deu.


*Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e mantém no NR a coluna Mistério do Planeta. Escreve de Salvador.

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