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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 23 de abril de 2013

Bastidores de um crime

Caros leitores,
O texto desta terça-feira, escrito pelo talentoso jornalista catarinense Fernando Martins, é real, aconteceu e acontece com mais frequência do que se possa imaginar, infelizmente.
Os nomes dos envolvidos foram modificados.
Semana que vem, eu volto com as crônicas.
Boa leitura,

Fernando Evangelista




por Fernando Martins*

Os dois policiais dão o mesmo testemunho: “O delinquente estava caminhando, viu a viatura e saiu correndo. Fomos atrás e, ao revistá-lo, encontramos 10 papelotes de cocaína no bolso da calça”. O delegado se dá por satisfeito e manda trazer o jovem, detido numa das celas da delegacia.

O rapaz nega ser dono da droga. “Os policiais estão mentindo”, ele diz. O chefe da delegacia mantém o flagrante e ordena que ele fique preso. Um advogado presencia a cena, chama o delegado num canto e cochicha:

– O garoto está de bermuda e ela não tem bolso. Como ele poderia carregar drogas no bolso? Isso só pode ser brincadeira.

 Eu já estou com o flagrante fechado, ele vai continuar preso e se o doutor quiser que converse com o juiz – rebate o delegado.

Juliano da Silva, 23 anos, não tem passagem pela polícia, não tem apelido, e mora no morro do Mocotó, área central de Florianópolis. É negro, pobre e está desempregado. Ou seja, na visão da polícia e de grande parte da sociedade, é um elemento altamente suspeito.

Juliano é filho de dona Clotilde, faxineira de 54 anos, que cuida sozinha de seis rebentos. O marido deu no pé e nunca mais apareceu. O sonho de Juliano é, um dia, ganhar bastante dinheiro e ajudar a mãe e os irmãos a sair da vida de miséria.

O “flagrante” ocorreu às 22h de uma sexta-feira. Os fatos:

Juliano desce o morro para fazer um lanche com os amigos, que o aguardam num barzinho do centro. Durante o trajeto, na Avenida Gustavo Richard, bem próximo ao Fórum, uma viatura policial para ao seu lado. Dois militares descem, um deles aponta a arma para o jovem, o manda colocar as mãos na cabeça e virar de costas.

Os militares exigem informações sobre um traficante. Seguindo as regras de quem mora em locais comandados pelo tráfico, Juliano diz não saber de nada. Os policiais insistem. Ele não fala. Então, irritados, a PM o joga na viatura e diz que ele terá que se explicar sobre os papelotes de cocaína.

 Cocaína. Qual cocaína? – ele quer saber.

O jovem mantém a calma, acha que tudo vai se resolver. Na delegacia, é levado direto para uma das celas, onde estão outros presos.

Um dos policiais liga para um repórter, velho conhecido. Em pouco tempo, a equipe de reportagem está na delegacia. São recebidos com sorrisos e abraços calorosos. Tomam um café e pedem para fazer imagens dos papelotes de cocaína. São dez papelotes, já cuidadosamente organizados na mesa do delegado.

Os militares dão as informações e destacam a importância da polícia no combate ao tráfico. O celular do repórter toca, é uma fonte comunicando a apreensão de uma grande quantidade de entorpecentes em outro ponto da cidade. Antes de ir embora, o jornalista pede para conversar com Juliano. Afinal, são as regras da profissão: é preciso ouvir o outro lado. É preciso ser imparcial.

O cinegrafista liga a câmera, o PM abre a cela e o repórter, com pressa, inicia a gravação:

 Em mais um excelente trabalho, a PM catarinense fecha o cerco ao tráfico de drogas e tira de circulação Juliano da Silva, mais conhecido como Morcego. Ele estava com 10 papelotes de cocaína. Vamos conversar com ele. Onde você ia levar essa droga?

– Não sei de nada, não senhor – responde o rapaz, cabeça baixa, voz quase inaudível.

O repórter fala algumas coisas e encerra a matéria. Com a câmera desligada, diz: “É sempre assim, nunca sabem de nada. Vai ficar em cana para refletir e aprender a lição”.

Já na manhã de sábado, o auto de prisão em flagrante chega às mãos do Juiz que, crendo como corretas as informações declaradas pelo delegado, mantém o flagrante e denuncia Juliano por tráfico de drogas.

O suposto traficante terá que aguardar o julgamento preso. O advogado, ao ver que Juliano não teria como pagar os serviços, decide não defendê-lo. Preso na delegacia há mais de cinco meses, Juliano recebe um advogado da defensoria dativa. Ainda não havia sido instalada a Defensoria Pública em Santa Catarina, último Estado da Federação a implementá-la.

Sem olhar direito para o rosto do jovem, o advogado, analisando o inquérito, orienta:

 Os caras te pegaram, o melhor é confessar. Confessa que a droga é sua, e como você não tem passagem pela polícia, como você já ficou preso cinco meses, eu consigo que tu saias em, no máximo, três meses. Você concorda?

– Mas a droga não é minha.

 Você é que sabe. A vida é sua. Eu tenho experiência e sei que, neste caso, é melhor confessar. Ele concorda com o advogado.

Exatamente um ano depois daquela sexta-feira, Juliano continua preso, à espera do julgamento.

Fernando Martins é jornalista, especial para o Nota de Rodapé

7 comentários:

Anônimo disse...

Texto excelente, história incrível, importante denúncia. Parabéns ao autor e ao Nota de Rodapé.
Leandro Rangel, estudante de jornalismo. Macapá.

Anônimo disse...

E fico perguntando: até quando? até quando, meu Deus? Até quando este tipo de injustiça vai continuar ocorrendo? Até quando vamos deixar que isso aconteça? Não é apenas a polícia a culpada por este tipo de coisa. Somos todos nós que silenciamos. Todos nós.
Larissa Machiettini, Foz do Iguaçu.

Anônimo disse...

Agradeço aos queridos colegas do Nota de Rodapé, e ao Jornalista e amigo Fernando Evangelista, por cederem este espaço para publicar o texto: Bastidores de um crime. Isso revela compromisso com as causas sociais, e acima de tudo, com a vida.

Fernando Martins
https://www.facebook.com/locutorfernando

Anônimo disse...

Infelizmente para alguns o carater é definido pela cor da pele. Nesse caso a pele escura é sempre a suspeita.
Devemos nos atentar na atitude das pessoas e nas provas , já está provado que todas as etnias cometem crimes ou delitos.
Não é correto abordar somente esse perfil de pessoa.

Betth disse...

Nossa que história... Sem palavras da minha revolta com a injustiça.

Anônimo disse...

"Da hora", como dizem uns amigos, esta crônica do Fernando Martins. E "da hora" em tempos de empobrecimento da percepção pública acerca do fenômeno da criminalidade, cuja "solução mágica" vislumbrada é o rebaixamento da idade penal. Eu estava dia desses num boteco, ali na região entre a comunidade do Sapé e o Monte Cristo (limites de Floripa com São Josè) e, pela enésima vez, conversava com um cara, ele próprio tantas vezes preso por questões de tráfico (o que meu interlocutor, neste caso, não negava) a relatar práticas sistemáticas de tortura no antigo 9o DP, que havia por ali. Lembrei de um conhecido de infãncia, o Toquinha, que um dia nos dissera, brutalizado, ter sofrido penetrações com agulhas sob as unhas de mãos e pés, ali no DP. Comentei com meu interlocutor, que atestou a prática. A tortura, que ainda perdura, se junta a contrafação do sistema penal e seus agentes, como tão bem reporta em crônica o texto de Martins. Nunca mais vi o Toquinha, só sei de um irmão morto precocemente. Tomara ele não tenha tido o mesmo fim.

Paulo de Tarso Duarte disse...

Deu um nó no coração... talvez esta seja a maior covardia que exista.
Imputar culpa a alguém e tirar-lhe todos os direitos e voz.
Juro que nestes casos, de tanta raiva, penso que a melhor solução era uma bala na nuca do juiz, dos policiais, do jornalista e do advogado, com as respectivas famílias comprando a bala.

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