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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Brasília



por Júnia Puglia  ilustração Fernando Vianna

 Nunca na nossa vida houve uma mudança como aquela. Um dia, saímos do interior de São Paulo, onde vivíamos na maior pobreza e no mais profundo provincianismo puritano, e no outro chegamos a Brasília, onde tudo era novo e borbulhante.

Sim, porque, ainda que o ano fosse 1974, e a nova capital apenas um espectro do que é hoje, para nós, autênticos bichos do mato, era Manhattan. Cheguei com dezessete anos e muita disposição pra desbravar o mundo novo.

Pra começar, viramos classe média da noite pro dia. Isso porque meu pai, que até então havia sido pastor evangélico numa comunidade pobre em todos os sentidos, acabava de ser contratado em Brasília como professor, com um salário antes inimaginável. Nossa família de seis almas instalou-se num modestíssimo apartamento de três quartos, num bloco de três andares, sem garagem nem elevador. Mas quem se importava com isto, se o simples fato de vivermos num apartamento era visto e sentido como se tivéssemos sido finalmente promovidos a verdadeiros seres urbanos?

Aqui todo mundo tinha carro e telefone, nenhum vizinho demonstrava qualquer interesse pelo que se passava no apartamento ao lado, e pessoas separadas, homens e mulheres, refaziam sua vida numa boa, com seus novos pares, com a maior naturalidade. Um espanto.

E eu adorava tudo. Aqui provei pão de queijo pela primeira vez na vida e conheci uma confeitaria de verdade, que me deslumbrou com suas bombas de chocolate e tortinhas de morango e maçã. Fui também apresentada a um restaurante chinês, onde entrei com muitas reservas, morrendo de medo do que ia encontrar; o frango xadrez teve gosto de outro mundo. Filé com fritas, conheci na cantina da Câmara dos Deputados.

Podíamos, finalmente, comprar roupas e comer pizza com coca-cola de vez em quando. Passear no Conjunto Nacional era um grande programa, mas o Beirute e o Gilberto Salomão eram antros de perdição onde se bebia cerveja e se dançava, e que só fui explorar muitos anos depois.

Aqui ninguém entrava na sua casa sem ser convidado, nem aparecia sem avisar, e as portas dos apartamentos estavam sempre fechadas. Percebi que existia uma coisa chamada privacidade, que me seduziu para sempre.

Aqui fugi da escola, antes de terminar o segundo grau, e nunca mais voltei. E mesmo assim pude sempre ter bons empregos e até fazer carreira num organismo internacional, por estar no lugar certo, na hora certa.

Aqui me dei conta de que a armadura da religião podia ser desvestida, e era perfeitamente possível viver sem ela. O alívio que senti foi diretamente proporcional ao calor do fogo eterno que me ameaçava até então.

Em suma, aqui comecei a virar gente.

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

4 comentários:

Anônimo disse...

Seu texto de hoje me fez olhar pra tras. Revi tantas cenas... Aprendi a olhar pra frente.também. Amo Brasília por seus encantos e...desencantos.
Beijos da Mummy Dircim

Anônimo disse...

Neste domingo Brasília comemora 53 anos.A cidade adolescente que conheci não existe mais. Felizmente manteve um certo charme, mas não é, nem de longe, o que lhe foi sonhada. mas amo esta cidade mesmo assim.
Márcia Ester

Anônimo disse...

Júnia,
Bela homenagem na semana em que se comemora o aniversário de nossa Brasília e uma inspiração para tantos de nós que, como você, a tiveram como "mãe" de uma nova vida (para mim, muito melhor!). Você me fez lembrar de muitas coisas que vi e vivi nesses 33 anos em que moro aqui.
Beijão, FF

Nômades pelo mundo. Marina e Edison. disse...

Viva Brasília! Pois bem, ao contrário de você, Junia, vim da cidade grande: Rio de Janeiro. Mas, nem por isso, Brasilia deixou de me encantar pelas oportunidades de ter um Renato Russo como meu professor de inglês na Cultura Inglesa, de ter sempre a visita da ilustre Cássia Eller em casa, na época era uma cantora simples que vivia se apresentando na Concha Acústica, nas entrequadras perto do Beirute, e assim por diante. Anos 70 e 80 foram os mais criativos, educativos, deseducativos e maravilhosos da minha vida! Viva Brasília!

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