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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Sumidinhos


por Fernanda Pompeu  Ilustração Fernando Carvall

Tive que bater pernas – e anote que moro em Sampa – para achar alguém que consertasse o relógio carrilhão de propriedade da minha mãe. Para os mais jovens explico: o carrilhão soa horas e meias horas com badaladas. O exemplar foi comprado por meu bisavô Cassiano, nascido na época da carochinha, no Minuto Inglês no bairro carioca Estácio de Sá.

Por fim, em uma obscura galeria da Brigadeiro Luís Antônio, consegui um mago capaz de manipulá-lo. Um velho japonês, encurvado e seco. Numa simples olhada, disse o problema e o orçamento. Uma semana depois, mamãe sorria feliz com o som do carrilhão.

Fiquei pensando que afinal as pessoas morrem. O velho japonês não ficará para semente. E não deixará seguidores. Com a imposição de objetos cada vez mais descartáveis, relojoeiros, técnicos de máquinas de lavar e congêneres estão a meio passo da extinção.

Mas não só técnicos de coisas tangíveis correm perigo. Também os doutores da palavra entram na fila para o além. Por exemplo, está cada vez mais complicado encontrar revisores. E quando os encontramos, não nos atendem de tão assoberbados.

É claro que não me refiro a revisores de conveniência. Ou seja, a secretária que foi boa aluna em português, o colega que nunca desgruda de um livro, o autor do texto. Aliás, este último é o menos indicado. Pois por ter escrito, ele fica cegueta na hora de revisar.

Faço menção aos revisores que conhecem a língua como a quebradeira, o coco. Aquele pessoal que zela pela correção e elegância. Que manja de sintaxe e semântica. Os que saboreiam conjugar, concordar, ritmar.

Alguém lembrará: esse "desparecimento" ocorreu em massa com os bancários. Quando entraram as caixas eletrônicas e bancos onlines, a categoria murchou. Minha irmã, uma bancária aposentada, costuma dizer: "Os correntistas foram transformados em bancários. Esse é o melhor do mundo para o lucro dos banqueiros."

Alguém que goste de história dirá que sempre foi assim. Profissões desparecem e outras nascem. Citará o que ocorreu na Revolução Industrial, no século dezoito. Artesãos se tornaram operários. O feito à mão perdeu espaço para o feito à máquina.

Hoje com a revolução digital, numa aceleração espantosa, profissões e profissionais são descartados, ao mesmo tempo que centenas de ofícios surgem a cada manhã. As pessoas, notadamente as mais velhas, reagem ora com nostalgia, ora com depressão, ora com entusiasmo.

Eu estou na turma das entusiastas. Acredito que o reino da internet veio para incluir e potencializar interações. Macaqueando o slogan da loja de hamburger, amo muito tudo isso. Filha da Remington e da Olivetti tento me adaptar no máximo.

No entanto, isso não impede que me arrepie ao calcular quanto de experiência e conhecimento irão morrer. Assistimos ao velório da arte de consertar relógios, somar números, revisar palavras. É o momento em que o real esvanece para no futuro ressuscitar como mito.

*fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto

5 comentários:

Regina disse...

Fernanda, li num folêgo só. Lindo e melancólico. Pensava nessas coisas inda ontem caminhando por Pinheiros à cata de uma costureira que desse um jeito numa saia mal ajambrada que alguma chinesa expulsa de seu torrão costurou sem arte nem poesia.
Penso nisso quando quero consertar aquele sapato que ainda dá uma meia-sola. Ou quando passo encantada pelo buraquinho que o relojoeiro da minha rua divide com o e encanador e o eletricista. O mesmo que restaurou o Roskoff Patent que foi do meu pai. Não só eles fadados à extinção, mas o cômodos das casinhas que eles subloca, seus antúrios cultivados nas latas de óleo de amendoim. Dinossauros numa grande vitrine de onde uma geração de plástico nem nos vê. beijos

Fernanda Pompeu disse...

Nossa, Reca. É isso mesmo. Com seu comentário chorei.

Jorge Stark (Miltextos) disse...

LI, como sempre, saboreando cada palavra. Viajo no texto, máquina do tempo. Aquilo que era feito para ser eterno dá lugar ao descartável. Às vezes, temo. Mas faço como você, querida Fernanda - que tanto me ensinou e ainda ensina - tento me adaptar.

"É o momento em que o real esvanece para no futuro ressuscitar como mito."

Definitivo.

Anônimo disse...

Ufsss... Fê! Temo muito esse rolo compressor. Em nome de umas coisas à vezes até favoráveis, abrem-se brechas para todo tipo de distorção das tais "mudanças modernizantes". É tragada profunda do "sem filtro". Vem de tudo. Espero que fique a centelha dos "bons mitos" para inspirar o futuro. Lindeza de texto... Celso

Tito Glasser disse...

A morte é uma arte. Dizer que somos passageiros é um mero clichê. A evolução está assustadora com certeza.
Nossas crianças não correm mas pelas ruas para brincar de bola, esconde-esconde, atrás de pipas como antes. Hoje elas correm atrás de luxo e vaidade, crescem com a palavras ostentação na ponta da língua. Acabou-se a magia e resta a nós por enquanto, ou melhor, até o nosso último dia de vida acreditar que existe esperança, que nossas palavras mudaram o mundo ou que alguém cultive o amor que temos pela arte da escrita e da literatura. Repito: A morte é uma arte e como ela seremos cultuados.

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