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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Medo e culpa na prática de exercício


por Alexandre Luzzi   ilustração Marcelo Martins Ferreira*

É comum ouvirmos das pessoas que há uma relação de causalidade entre a prática de exercícios físicos e o conceito de saúde. É um posicionamento com raízes no consenso encabeçado, principalmente, pela comunidade médica e científica.

O certo e o errado, as relações de funcionalidade, os processos de intervenção em nosso próprio corpo, em nossas vidas, o que fazemos, o quanto fazemos, são mediados pelos manuais da ciência. Quando alguém quer fundamentar um argumento como “a verdade” diz que “os estudos científicos comprovam”.

Agora, se mudarmos essa perspectiva do sentido e do significado sobre o que entendemos como saúde a relação de causalidade é colocada em “xeque”. A maioria de nós assume que praticar exercícios é bom para a saúde e determinante para o pleno desenvolvimento em outros âmbitos de nossas vidas.

Pergunto: quais são as razões de tanta dificuldade em aderir a uma prática e uma rotina de exercícios? Ausência de tempo, muito trabalho, filhos, falta de locais adequados, inadequação em relação aos ambientes oferecidos, pouca oferta de modalidades interessantes, incompetência profissional na prestação de serviço, cansaço, desinteresse, enfim... a lista é grande.

Observo diariamente pessoas que tentam iniciar uma prática corporal e desistem nas primeiras semanas. Tenho consciência que as barreiras citadas acima podem se tornar intransponíveis. No entanto, pouco iluminada pelos holofotes da nossa razão é a injunção exercício físico e saúde, essa, sim, a maior de todas as barreiras.

Sugiro ao leitor um pequeno exercício para melhor compreensão. Pegue um pedaço de papel e, em poucas linhas, escreva o que significa para você a palavra saúde. Em linhas gerais, perceberá que são as condições negativas que fazem a saúde existir. Ou seja, a saúde só pode ter sentido quando relacionada à doença. Logo, o principal elemento utilizado, de forma deliberada, para motivá-lo a praticar exercícios é uma emoção chamada medo.

Caso optem ao sedentarismo, o convencimento à prática de exercícios virá da alimentação do medo de doenças e a contrapartida dessa engrenagem gera um outro sentimento que conhecemos como culpa. Eis uma dupla quase imbatível para te convencer a praticar exercícios. E se você não praticar e adoecer: "a culpa é sua!"

Quando o sujeito se propõe a uma prática corporal, o caminho mais curto é a ressignificação, ou seja, essa adesão se situa na possibilidade de criação de um novo sentido que surge a partir da qualidade do encontro consigo mesmo e com o outro.

O medo e o sentimento de culpa puxam nossa percepção para o nível onde os imperativos ideológicos sobre atividade física e saúde são operados e reduzem toda a possibilidade de resignificação de sentido. Preso a essa rede de sentido, o sujeito sucumbi à demanda de esforço para sustentação de qualquer prática corporal, já que todo sentido que o mobiliza é externo a ele mesmo.

Concorda comigo o Professor de Educação Física Flávio Soares Alves ao afirmar que: “Quando se dobra a atenção sobre uma prática corporal e se força a incuti-la como exercício regular de cuidado, tal movimento pode ser estimulado pela força imperativa dos ideais vigentes na esfera pública, ou por um movimento original de cuidado que não abre mão de si mesmo frente à presença insondável do ideológico.” Para ele, “enquanto no primeiro caso a prática não passa pelos crivos da adesão, no segundo o sujeito realmente se apropria da prática que realiza e faz deste movimento um exercício de cuidado consigo e com o outro.”

A educação para uma ciência positivista predomina na cultura moderna e a Educação Física parece ser afetada por isso, situação na qual predomina uma visão extremamente tecnicista e biológica do corpo humano, esvaziando de suas práticas um sentido maior para o movimento que não seja a prevenção de doenças, a estética e o desempenho motor em níveis máximos, excluindo do trabalho com o corpo uma percepção maior do mesmo – o que sentimos ao movimentá-lo, as relações desse corpo com a cultura, com o outro e com a natureza.

No próximo texto vou mostrar ao leitor como uma modalidade como o Pilates, se bem conduzida, pode coincidir com essa nova proposta.

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*Professor de Educação Física, capoeirista, Alexandre Luzzi coordena o espaço Tai Ken e mantém a coluna mensal Corpo a Corpo. Marcelo Martins Ferreira, ilustrador, design e músico, especial para o texto

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