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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 23 de junho de 2009

Casa de ferreiro

Sexta-feira é dia de visitar o ferreiro. As ferraduras de Faísca estão gastas pelo asfalto e só aguentam mais dois dias. Da Charlote até lá, quase 10 quilômetros, trajeto puxado, mas Clóvis explica que vamos no melhor ferreiro da região, dos poucos remanescentes na capital. É a ferraria do Pereira e a profissão é uma das mais antigas do mundo.
O cenário é marcante. Seis metros de frente por 15 de fundo. À esquerda, um eixo de rodas para vender; a bigorna ao centro, apoiada em um tronco de árvore; o forno à direita; as ferramentas – martelo, cinzel, tenaz e a lima – espalhadas, a tina cheia de água para esfriar as ferraduras, um palanque de madeira para amarrar os cavalos e a faixa anunciando: “Ferraria do Pereira – Arreios e Ferraduras”.
Pereira é apelido, o nome é Edison Faustino da Silva, 40 anos, camisa surrada bordada com o nome de Jesus e o número 1 bem grande. Estatura baixa, mulato, homem simples, paulistano da Cachoeirinha, filho de pernambucanos, casado, seis filhos. “Sou ferreiro desde sempre, nunca tive outra profissão”.
O pai era carroceiro. “Fui criado com o cavalo nas costas e tive que vender muita bosta de cavalo pra sobreviver”. Está há 25 anos nesse ofício aprendido com um italiano do bairro do Limão. Sem estudo, ele só sabe assinar o nome.
São 25 reais para ferrar um cavalo, o que lhe rende a média de 500 mensais. Trabalha todos os dias, menos domingos, das 8 às 16 horas. “Tenho uns vinte clientes e gente que vem até de Osasco.” Como os carroceiros, Pereira terá seu trabalho afetado. “Vou perder meus clientes e o que vou fazer da vida?”
Faísca está à espera das ferraduras novas. Pereira abastece o fogo com tocos de madeira. Coloca o ferro bruto no fogo. “Uso ferro de portão, esses de cinco oitavos.” O ferro aquece até ficar
rubro e aí é martelar, moldar a peça no formato desejado. É tudo muito rápido. Bate, esquenta, bate, bate, esquenta mais, fura (são seis furos), faz a ponta, esquenta e esfria na tina. Vai para o polimento e a ferradura está pronta. Faz as outras e agora é a vez de calçar Faísca. Tira as ferraduras gastas, limpa, queima o casco – para evitar bactérias – e com jeito martela os cravos das novas ferraduras. Quatro crianças param encantadas para observar Faísca enquanto o serviço é finalizado, com óleo nos cascos para amaciar. “Está pintando as unhas dele, criançada”, brinca Clóvis, sorridente.
Evangélico, Pereira vai “de casa pro trabalho e do trabalho pra igreja”. Na saída reparo numa mensagem na parede da ferraria: “E Deus lhe enxugará dos olhos toda a lágrima”. Carroça no asfalto e uma idéia em mente: na pancada está a arte de Pereira.

Trecho da reportagem "A última Carroça" de minha autoria publicada em junho de 2006. A reportagem contou com o companheiro Edu Moraes, vulgo Cazu, foto que abre o blog, personagem Pereira, o ferreiro da matéria. Álbum completo das fotos olhe aqui.

6 comentários:

Unknown disse...

só divulgando...

http://euditoapauta.blogspot.com

Bjs!

s. disse...

Oi, Thiago. Li essa reportagem quando foi publicada na Caros Amigos e preciso dizer que foi com ela que aprendi a admirar o jornalismo, esse que eleva os valores sociais, os personagens simples, as histórias como a desse homem, o ferreiro Pereira, grande homem. Parabéns pela sensibilidade.
Um beijo.

Thiago Domenici disse...

S., não é? O melhor elogio que um jornalista pode receber é saber que com seu trabalho fez alguma diferença. Obrigado pelo comentário sincero. Espero que o jornalismo ainda seja admirável pra você. Se quiser me escrever pra trocarmos ideias seria um prazer tr.domenici@gmail.com

s. disse...

Desculpe, não quero decepcioná-lo, vamos nos falando aqui, por enquanto.
Acredito que o jornalismo possa fazer diferença. No meio em que convivo, são poucos que escrevem sobre esse perfil. Faz falta da abordagem dos assuntos sociais e direitos humanos. No último Profissão Repórter, Caco Barcelos falou sobre a cracolândia, apesar de que os poucos 30 minutos que a Globo dá, não mostram tudo o que deveríamos saber...
Quem toma conta desses seres humanos, será que ninguém presa por suas vidas?

Na virada cultural desse ano, precisamente na rua Aurora, onde todos se divertiam, vi uma cena que me tocou...três crianças na calçada cheirando cola. Lamentável, uma cena que não dá pra esquecer - não consigo esquecer - ninguém olhava em direção a elas.

Quem escreve tem a vantagem das páginas abrigarem um pouco mais do que se vê e a desvantagem de não contar com a imagem latente. O importante é fazer jornalismo responsável. Você faz isso e com sentimento.

Um abraço.

s. disse...

*preza

Thiago Domenici disse...

Oi, S. Jornalismo não é o fim em si, é um meio. as atrocidades ocorrem a todo instante. é difícil ver e se não se chocar. O que pega é não se envolver. Fingir que não é teu problema. não dá para abraçar o mundo, mas dá pra cobrar e lutar pra que ele fique mais igual e justo. Mas aí é outra história. obrigado. até, thiago

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