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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Pretensão e água benta

Quando vivi em Portugal, nos anos 90, fiz muitos amigos. Entre eles, o Camané, apelido de Carlos Manuel Borges, jornalista e assessor político do até então presidente Ramalho Eanes. Foi diretor de um semanário em Macau, ocasião em que colaborei com crônicas enviadas do Brasil.
O Camané faleceu ainda jovem, vítima de infecção hospitalar pós operatória. Homem de muitas virtudes, o Camané era bastante criticado pelo comportamento egoísta que por vezes apresentava. Em particular às refeições, onde era o primeiro a se servir e a escolher os melhores nacos e pedaços dos pratos servidos, sem cerimônias. Certa vez, ele foi criticado e questionado pela mulher de um amigo comum e sua resposta foi simples: disse que fora educado na companhia de outros dez irmãos e que desde cedo teve que aprender a se virar, em particular durante as refeições. Embora simplória e até certo ponto injustificável, ainda que verdadeira, a explicação penso que convenceu pelo menos aos seus amigos mais próximos. E suas outras virtudes superavam essa, digamos, pequena mazela.
Essas lembranças e reflexões vêm a propósito de um fenômeno que acontece no Brasil nos últimos anos, notadamente nos últimos quatro ou cinco. Nos dias que correm, é comum ouvir-se em certas rodas ou grupos sociais as mais variadas críticas ao governo do presidente Lula. Em geral de pessoas bem nutridas, bem vestidas, com todos os dentes na boca, carros do ano, com títulos acadêmicos e ações na Bolsa de Valores, donos de terras griladas em São Paulo ou no Mato Grosso, frequentadores de Paris, Miami e Buenos Aires e que insistem em apontar e debochar do “jequismo” do presidente e sua mulher, da sua falta de preparo, das irregularidades, do oportunismo e da corrupção do seu governo, do assalto aos cofres públicos por aqueles que nunca tiveram nada... E por aí afora.
Esquecem-se, esses praticantes e defensores da moralidade pátria, do extremado egoísmo e da cultura neoliberal de que sentem saudades, que o Brasil, graças, sobretudo aos últimos oito anos de governo do presidente Lula, se transformou na casa dos dez irmãos do Camané. Muitos têm que defender o seu pão de cada dia, outros tantos ganharam – pela primeira vez em 500 anos – a oportunidade de se defenderem à mesa ou fora dela, com empregos, bolsa família, Prouni, crédito mais em conta, luz e vaso sanitário no lugar da fossa. Os juros bancários caíram de 27% ao ano (governo FHC) a 8,5% ao ano no atual governo, o país saldou a sua até então eterna dívida com os credores internacionais e hoje empresta dinheiro ao FMI.
Contudo, a arte de falar mal faz parte da nossa cultura. Disso é prova o cantor Caetano Veloso que em recente entrevista ao Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo disse, entre outras bobagens, que Lula é analfabeto e tem uma linguagem grosseira. Ou da atriz (?) Maitê Proença, a dizer bobagens e desfilar seu preconceito sobre o Portugal do Camané num desses programetes metidos a eruditos e inteligentes. Argumentos falaciosos de parte de uma elite branca, alguns até de sobrenomes estrangeirados, cujos pais e avós foram bem recebidos nessa terra encantadora, frustrados com a grande aceitação e o reconhecimento do atual Brasil no concerto das nações. País que ultrapassou a crise financeira mundial com uma estratégia adequada à superação de inúmeros problemas, sendo o desemprego o fortalecimento do mercado interno os principais deles.
Mas quem, por acaso e paciência, conseguiu ler até à última página o livro ‘Verdade Tropical’ (a que já chamei de ‘Vaidade Tropical’) não se surpreende mais com estes ataques elitistas do filósofo baiano da contemporânea escola sofista do Leblon e dos Jardins e que teve o desplante de dividir a cultura brasileira em antes e depois de Caetano Veloso (leia-se no tal livro a sua explicação sobre o tropicalismo). Quanta arrogância e quanta inveja e frustração ao mesmo tempo!
Fico aqui pensando se quando o Caetano vai dormir, ele não fica ali se imaginando no mesmo panteão de Machado de Assis, Mário de Andrade, Di Cavalcanti, Carlos Gomes, Joaquim Nabuco. Ou a Maitê, sonhando em ser Cacilda Becker, Fernanda Torres, Madame Morineau, Miriam Muniz. Afinal, pretensão e água benta não fazem mal a ninguém. Sinto mais simpatias pela transparência e pela frontalidade do Camané ao falar do seu egoísmo aos seus críticos...

Izaías Almada é colunista do blogue Rodapé e autor, entre outros, do livro ‘Teatro de Arena: uma estética de resistência’, Editora Boitempo

2 comentários:

Jéssica Santos disse...

Pois é as pessoas de classe média realmente não enxergam qualidades no Lula e nem em seu governo. Será que não conhecem alguém, sei lá sua empregada doméstica ou o porteiro, que melhoraram de vida por causa do governo atual, ou não não se importam? Eu não consigo entender mesmo. Conheço várias pessoas que se formaram por causa do Prouni e aproveitaram muito mais a faculdade dos que o "papai" pagava. Caetano precisa ir pra um retiro e nunca mais ser entrevistado, ele ultrapassou os limites do próprio nascisismo.

Moriti disse...

O Caetano e Maitê são exemplos clássicos da elite brasileira e da nossa mediocre classe media (que eu denomino "classe mérdia") independente de cor da pele, origem social ou regional.
Ou seja, representam discriminação pura e ranço por verem um "presidente/torneiro mecãnico/semi analfabeto" realizar uma admnistração que eleva o Brasil a uma condição positivamente histórica. Ressentimento puro. Parabéns pela coluna, Izaías.

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