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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 27 de abril de 2010

Na casa de veraneio do Tango, Paris, nasceu o Gotan Project

Se a Argentina também é o país do tango, é na França onde ele passa as férias, descansa e volta à terra natal renovado. Assim foi desde o começo, quando o ritmo precisou chegar de barco a Paris para então ser aceito em Buenos Aires. “Se os europeus dançam, então não é coisa da plebe”, pensou a fresca burguesia portenha.
Restrito aos “sem classe”, foi na cidade luz que Astor Piazzolla - um incompreendido na Argentina por seu estilo de tocar - pôde desenvolver seu talento. Na capital francesa conheceu o jazz sob influência de Gerry Mulligan – e teve tempo e espaço para se descobrir. Quando voltou a Buenos Aires, e após lutar contra um batalhão de críticos, revolucionou o ritmo com seus arranjos e timbres próprios.

Ira dos puristas
Mesmo reconhecido, Piazzolla conviveu a vida toda com a ira dos puristas. Conta a lenda que em um concerto, já quase no final, um senhor de chapéu, depois dos aplausos do público, bradou: “Muito bem, agora o senhor poderia tocar um tango?”.
Portanto, não é pura casualidade que no final do século passado um suíço (Chirstoph Muller), um argentino (Eduardo Makaroff) e um francês (Philippe Cohen) tenham se encontrado em Paris para criar um conjunto que deu início à segunda renovação do tango. O primeiro disco do Gotan Project se chama La Revancha del Tango (a Revanche do Tango). Pode soar presunçoso, mas foi profético. Aberto o caminho, diversas bandas ingressaram na onda de misturar o velho tango com samplers e música eletrônica.
O primeiro álbum do grupo, de 2001, é inovador não só no som, mas no conceito. Além disso, há em Gotan Project uma questão estética muito forte. Preocupação com cenário e vestuário que realmente impressiona quando visto ao vivo.
Por fim, e seguramente por influência de Makaroff, o argentino do trio, as músicas do grupo estão carregadas de mensagens que fazem referência à Argentina.
Em Queremos Paz, música que abre o álbum, a voz de Che Guevara no famoso discurso que fez na ONU em 1964: “Queremos paz, queremos construir uma vida melhor para nosso povo”.



A música Época fala do fenômeno das “desaparições”, horror praticado pela ditadura argentina:


Desapareceu, e em mim reaparecerá
Acreditam que morreu, mas renascerá
Não eram boas essas épocas,
Eram maus esses ares,

Foi há 25 anos,
E você existia sem existir ainda
O primeiro álbum foi um sucesso e o grupo rodou o mundo para se apresentar. Demorou cinco anos para que viesse o segundo disco (Lunático), que tem como característica uma mistura ainda mais acentuada com outros ritmos, como o candombe (ritmo trazido para a região do Rio da Prata pelos escravos negros e carregada por batuques).

Vide Arrabal, do segundo disco:


O negro bebeu, bailando Candombe
Lágrimas de seu tambo/Genial

Esses coros levam sonhos

Ao outro lado do mar

E um vento de arrabalde

Assobiou à noite

E no meu país se escutou/Cantar
Mas Gotan Project foi mais longe e flertou com o rap, nesta maravilhosa canção Mi Confesión:



O que esperar então do terceiro álbum que acaba de sair do forno? Ainda não escutei com a devida atenção, mas vejo um Gotan Project ainda mais cuidadoso com os arranjos e os detalhes - que fazem a diferença. As inserções de temas argentinos seguem vivas e funcionando. Como em La Glória, em que o narrador esportivo Victor Hugo Morales (figura conhecidíssima e lendária na Argentina), descreve uma linha de passe em que todos os músicos da banda participam – e que termina em “Goooootan”.
Em Rayuela (jogo da amarelinha), Cortázar (escritor argentino que viveu anos em Paris) surge lendo o capítulo 7 de seu livro que tem o mesmo título da música. Em seguida, um coro de crianças canta:


Um, dois, três: Terra, Céu
Cinco, seis: Paraíso, Inferno

Sete, oito, nove, dez:
É preciso saber mover os pés
Na amarelinha ou na vida

Você pode escolher um dia

Por qual costado?
De que lado saltará?
Não posso participar da promoção que o Nota de Rodapé lançou. Deixo aqui um conselho aos três sortudos que ganharem o novo disco de Gotan Project. Procure encontrar nas músicas o que não é visível (ou audível) a primeira impressão. É um trabalho de artesão e o resultado é de quitar o sombrero, quase uma viagem a Buenos Aires (com escala em Paris).
Deixo de bônus a música Diferente, do segundo disco, e que tem um clip tão lindo quando a canção.



Ricardo Viel é jornalista e mantém a coluna Conexsom Latina neste Nota de Rodapé.

Um comentário:

Diogo Ruic disse...

bom panorama, viel. já gostava deles e, entendendo seus caminhos, ficou ainda melhor. abs!

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