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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 27 de maio de 2010

O efeito Veja e a fabricação de novas realidades no jornalismo

A semana que passou entrará para a história – se é que haverá algum registro histórico sobre isso – como uma das piores de todos os tempos para o jornalismo brasileiro. Ela não trouxe novas práticas, mas sim a intensificação à enésima potência de práticas que vinham se acumulando no seio desse ofício.
As violações éticas cometidas ao longo dos últimos tempos vão do tradicional “esconda no rodapé a informação que não nos interessa” à mais desbragada das mentiras. O caso mais evidente, lógico, é o do Irã. Na tentativa de atingir a qualquer custo o governo Lula, inverte-se o sinal de uma negociação bem sucedida, conta-se todo tipo de barbaridade sobre o país asiático e trata-se de esperar a tolerância de um leitor-pouco-crítico.
Fico imaginando, apenas a título de hipótese, sem qualquer pretensão de estar a fazer ciência, se essa semana que passou não é um dos efeitos “Veja” que estamos assistindo em nosso jornalismo.
Parece fácil imaginar que a ética se forma a partir de dois vetores, quais sejam a ética de uma determinada localidade durante certo período de tempo e a ética própria, um conjunto de valores acumulados por cada indivíduo ao longo de sua convivência. Evidentemente, um altera o outro, ou seja, um padrão de ética depende do outro e, ao fim, forma-se apenas um.

Jornais brancaleônicos
Falemos da ética jornalística deste momento em que vivemos, sem a necessidade de remeter aos casos das eleições de 1989, com a grotesca manipulação por parte da Rede Globo. Os jornalões brasileiros e as redes de TV estão rodeados, entre outros, pela revista Veja. Oras, se a Veja há anos descolou-se completamente da realidade para fabricar a sua própria, com as regras e os fatos que deseja que ocorram, qual o efeito disso para quem a rodeia?
Não é de surpreender que os jornalões estejam a perder o contato com a realidade também, a se transformarem em jornais brancaleônicos. Se a Veja pode mentir e não sofre muitos arranhões por isso, e talvez até lucre mais, por que os demais ficariam de fora? Não nos esqueçamos que, no Brasil, os jornais são empresas com fins lucrativos e com interesses bastante claros, embora bastante diversos. É natural que se vá testando uma mentirinha após a outra, para ver qual o limite e, ao se detectar que tal limite não existe, perca-se completamente o contato com a realidade, passe-se a inventar o que bem se entenda.
E o efeito Veja no chão-de-fábrica das redações, como funciona? Quem já trabalhou em uma destas “escolas” sabe que, ao menos nos últimos anos, premiado é aquele que aceita contar uma mentirinha, dar uma invertida nos sinais, “pesar a mão”, como se diz no jargão. “Pesar a mão” é o sinal de uma distorção que pode ser pequena ou grande, mas é uma distorção e, por isso, é grave independentemente do tamanho.
Imagine-se dentro de uma redação dessas. Você vê que o colega ao lado, que aceita pesar a mão, ganha afagos, aumentos e promoções de seus patrões, a quem igualmente trata como colega. Manda o sistema da competitividade no qual vivemos que, se um faz e se dá bem, outros o sigam automaticamente. Não interessa, neste caso, a violação ética, até porque a ética, a essa altura e nesse ambiente, já corresponde a um outro conjunto de valores no qual a verdade não é exatamente parâmetro. Pode até passar a ser divertido para um repórter inventar pequenos fatos; médios, grandes. Não demanda grande rigor com a apuração e é, portanto, mais fácil.
Evidentemente, aquele que não se deixou levar por esse conjunto de normas éticas forjadas dentro dessas redações não se colocará à disposição de tais práticas. Mas sempre haverá quem o faça. E, portanto, como há mão-de-obra e como não há punição, os jornalões podem manter seus caminhos nesta Cruzada Medieval. Mas esse exército de Brancaleone não deve se assustar se, pelo caminho, encontrar a fome e a peste. Tomara.

João Peres é jornalista e colunista do Nota de Rodapé 

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