Na pizzaria, todos sorriam logo à entrada. Pudera, o forno bem ali à vista, a lenha queimando, o homem de branco alisando a massa com o desvelo de um pediatra, a bacia enorme vermelha até à boca de molho de tomate, o orégano perfumando o ar – aquela promessa toda, se já é irresistível para o paulistano comum, que dirá para um que foi criado no Bom Retiro, lá ora baixo, à beira da várzea, no miolo do quarteirão compreendido pelas ruas Sólon, Anhaia, Barra do Tibagi e dos Italianos? Lá onde até um crioulo retinto e jovem como o Ribim jogava morra no “bar do vinheiro” fazendo-se ouvido a meia quadra de distância com sua cantada frenética acompanhando o movimento da mão direita que batia na mesa e voltava no abre-e-fecha cadenciado do Cinque! Otto! Sei! Ter! Morra! Ter! Due!...?
Pizza com bastante tomate e um jornal no forno, prestes a ser lançado, o boneco pronto, as matérias do número zero até tituladas já, quem podia querer mais do que isso? E que matérias! Lembro ainda de algumas das principais chamadas de capa: a escalada da violência, uma reportagem que partia do emergente Esquadrão da Morte para projetar um quadro futuro sombrio quanto ao armamento não só das mãos, mas pior e principalmente dos espíritos; o começo do fim de Pelé, que passava a alimentar com sofreguidão seu lado argentário através de seguidos contratos de publicidade, transformando em artigo de consumo a reverenciada imagem de maior ídolo do País; havia colunistas também, por exemplo dois Chicos: um Buarque, o outro Anísio. Ia ser um grande semanário o “Idéia Nova”, tablóide cujo projeto de execução nos fora confiado por um dos maiores jornalistas e editores que o Brasil já conheceu – Samuel Wainer.
Aliás, acabávamos de chegar da “redação” que Samuel mandara improvisar na suíte de um hotel da Boca do Lixo. Máquina de escrever, papel canetas Bic, tudo de que se precisava para fazer um bom jornal. Além de homens, uma equipe de jornalistas como raras vezes se consegue reunir em torno de um projeto de publicação, quase todos recém-saídos da revista “Realidade”.
Samuel estava no Rio, e nós terminávamos de estraçalhar a primeira de mozzarella quando o rádio divulgou a notícia, que nos arrastou a todos, num lance, da mesa para junto do rádio, no balcão: o Presidente Costa e Silva acabava de decretar o Ato Institucional n°5, diziam todas as estações, em cadeia. Era a noite de 13 de dezembro de 1968. O ar azedou, a cor viva da pizzaria desbotou-se, nós, a equipe eufórica de um minuto atrás, nos entreolhamos em silêncio de luto. Inaugurava-se uma era de censura, e uma publicação aberta e combativa, e ainda por cima pertencente a um editor cassado – Samuel – perdia a razão de ser. “Idéia Nova” morria no útero.
Talvez esse viesse a ter sido o melhor jornal da minha vida.
2 comentários:
Muito bom o texto. O final arrepia e dá a dimensão da tristeza daquele momento.
Excelente texto, me senti na pizzaria junto ao grupo. É interessante, principalmente para mim que nasci um ano após a volta à democracia, conhecer um pouco mais de uma época da qual só tenho informações por livros ou conversas com meu pai. Sempre ouvi falar sobre o período, mas uma história como esta dá uma dimensão bem vívida das frustrações causadas pela ausência da democracia.
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