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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O inflar moderado das bochechas e a amizade

As viagens de elevador sempre me causaram desconforto. Não se trata de pavor por estar enclausurado em uma caixa de aço ou mal-estar pelas subidas e descidas. Minha questão está relacionada ao estranho-conhecido com quem sou obrigado a dividir dois metros quadrados. Demasiada intimidade.
O que fazer/dizer nos poucos segundos em que você e a outra pessoa compartilham aquele pequeno espaço? A saída mais óbvia e confortável é apoiar-se nos clássicos chavões (‘esfriou, né’; ‘será que chove?’) para solucionar a questão. Comigo a tática não funciona. Acabo me sentindo um completo estúpido e me envergonha da pequenez humana.
Ao mesmo tempo, sei que é absolutamente impossível tentar iniciar uma conversa que tenha um mínimo de profundidade. São segundos que teremos para discutir os problemas vitais. Inviável.
Ultimamente minhas viagens de elevador têm sido bem mais agradáveis. Há meses tenho um companheiro. Um senhor de seus sessenta anos que pouco antes das sete da manhã, inclusive nos finais de semana e feriados, encara a viagem dentro daquela caixa de aço para poder fumar seu cigarro no estacionamento do prédio. Há entre nós uma compaixão silenciosa.
Ao olhá-lo, penso: “Pobre homem. Trabalhou a vida toda, conseguiu juntar algum trocado para comprar sua morada, e hoje precisa abandona-la em plena madrugada para fumar em paz o primeiro cigarro do dia para não ser torturado mental (e quiçá fisicamente) pela esposa, que um dia foi companheira, mas hoje é inimiga”.
Arrisco dizer que quando meu amigo me fita de canto de olho, vem a sua mente algo do gênero: “Pobre rapaz. Sempre com essa cara abatida, derrotado. Tão cedo tem que levantar para se dirigir a um trabalho que não deve fazer com gosto e que não tem coragem de largar porque lhe paga o suficiente para o aluguel. Tomara não termine a vida ao lado de uma mulher que nem lhe permita fumar um cigarro quando acorde”.
Os primeiros encontros no elevador foram tensos. Com o cérebro ainda operando no modo de segurança (apenas as operações vitais em funcionamento) o único possível é balbuciar uma palavra. Da primeira vez tentei um “opa”, mas ele, mais formal, já havia ensaiado um “bom dia”, que saiu ao mesmo tempo do que meu cumprimento. O descompasso nos deixou bastante constrangidos. Na saída do elevador, me escapou um “falou”, que ele respondeu com um “bom dia”. No dia seguinte, adotei a tática do “bom dia”, mas ele, ainda sonolento, disse, um instante antes, um “boa noite”. Quando a porta se abriu, me saiu um “tchau tchau” e ele rebateu com um “falou”. Ambos soaram falsos, e cheguei a conclusão de que nunca seriamos amigos nesses tristes madrugadas se não alcançássemos essa afinidade.
Foi no terceiro dia que nos entendemos e demos início a essa linda amizade que agora existe. Naquele início de manhã eu estava especialmente destruído e, ao entrar no elevador, não tive forças sequer para abrir a boca. Meu gesto foi espontâneo e em momento algum tive a mínima noção de sua grandeza. Simplesmente movimentei moderadamente a cabeça para baixo e para cima e inflei, com parcimônia, minhas bochechas. Só depois fui me dar conta de que aquela saudação era um tratado sobre o sofrimento humano, as mazelas da vida e a tristeza de se encarar o universo totalmente desarmado. A reação de meu amigo foi imediata, sincronizada e perfeita. Repetiu o gesto com a mesma altivez e sabedoria.
Ali estava nossa chave. Sem palavras, nos entendíamos. Demos força um ao outro. Sofremos juntos nossas penas e, ainda em silêncio, transmitimos ânimo para aquele início de labuta que prometia ser penosa. Na saída do elevador, o adeus veio em forma de uma mão – a direita – erguida levemente. Não era um aceno, nos vos confundais. Era apenas um levantar de braço com a palma da mão aberta. Gesto simples, mas muito mais forte do que um abraço.
Desde aquele dia nossas manhãs começam menos triste. Embora não tenha conversado com ele sobre esse assunto – nem sobre nenhum outro, jamais – sinto que minha presença no elevador lhe passa serenidade e lhe dá o combustível necessário para tragar com força seu cigarro matinal e voltar à casa disposto a suportar a tragédia humana. De minha parte a sensação é a mesma. Tenho um companheiro que me entende e está a meu lado sem nenhum interesse. Somos amigos graças a nossas bochechas e nossa mão direita.
Amizade de elevador é coisa rara e deve ser cultivada. Até então eu só havia conquistado um amigo nessas circunstâncias. Um senhor austero, digno, mas completamente torpe na arte da convivência na caixa de aço de dois metros quadrados que nos sobe e baixa. Sempre se apressava em cumprimentar-me e, invariavelmente, dizia frases óbvias e dispensáveis. Por quere-lo, passei a entrar no elevador com celular em mãos. Assim que respondia seu “bom dia”, eu agarrava o celular e apertava a primeira tecla que meu polegar encontrasse. Era a senha: estou ocupado, respeite. Assim, viajávamos os quatro andares em paz e terminávamos o recorrido com a saudação de praxe. Um dia cometi o equivoco que deu início a nossa relação de cumplicidade. Ao ingressar no elevador, vi que ele trazia compras e passei a analisa-las (com muita discrição). Ao levantar a cabeça, minha mirada e a sua se cruzaram de forma que ele se sentiu obrigado em dizer algo. E foi quando, sem argumento e preso na angústia de dialogar, o senhor da cobertura me disse: “É isso”. Um pouco espantado, entendi que aquela era a senha da cumplicidade absoluta. A mensagem era clara, cristalina. O que eu dissesse ele estava de acordo. Éramos amigos. Uma pena, meses depois me mudei e duvido que ele tenha encontrado alguém capaz de entender a profundidade de seu “é isso”.
Em breve estarei de férias. Sentirei a falta de meu companheiro fumante. Talvez eu volte a meu antigo prédio apenas para tentar encontrar o senhor da cobertura. Quando ele me disser seu sábio “é isso” responderei com um moderado movimento de cabeça, para baixo e para cima, com a simultânea inflada parcimoniosa de minhas bochechas. Tenho certeza que ele vai entender toda a profundidade desse singelo gesto.

Henrique de Melo Sabines, mineiro, 30 anos, trabalha na ECT e se dedica à astronomia nos fins de semana. Fã de Drummond, começou a escrever por recomendações médicas. É um dos autores do espaço Cronetas no NR.

7 comentários:

Anônimo disse...

Quanto escritor bom tem por aí, escondido, às vezes por timidez, às vezes por falta de oportunidade...
Gostei demais do texto. Quero mais.

Gabriel disse...

Henrique! Parabéns pela estreia, muito bom! Vou acompanhar!

sofia amaral disse...

excelente!!

@renatafm disse...

também passo por esse momento de elevador. pela primeira vez na minha vida moro em prédio e no sétimo andar. elevador é necessário e as vezes me incomodo...
muito bom o texto...vou divulgar

Banca dos B-Boyzz disse...

Parabéns Henrique! Uma ótima crônica para um espaço tão sobe-e-desce nos cotidianos estáveis da vida! Valeu!
Poeta Xandu

Anônimo disse...

muy bien planteada y analizada la situación. Excelente

Anônimo disse...

cara, me vi nessa cena. o escritor é bom!

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