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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Como lidar com a simpatia suspeita (e o caso do Miguel do sebo)

O termo não é meu. Foi cunhado por um amigo ou ele roubou de alguém. Fato é que posso me considerar o responsável por desenvolver a teoria sobre essa curiosa espécie: os simpáticos suspeitos. Grosso modo, são aquelas pessoas – normalmente totais desconhecidas – que, sem motivo aparente, demonstram, já no primeiro contato, uma amabilidade e carinho desproporcional para a situação posta.
Após meses de análises e estudos de caso, identifiquei duas espécies clássicas de simpáticos suspeitos, com igual nível de periculosidade social. Desenvolvi, com base na pesquisa realizada, um protocolo de atuação em caso de abordagem.

Classe de simpáticos suspeitos

1) Simpáticos por profissão

Por pura necessidade - diria até, sobrevivência -, algumas pessoas desenvolvem esse tipo de simpatia. Justamente por ser imposta, ela é falsa e condicionada a uma possível retribuição. Exemplo clássico dos simpáticos por profissão são os vendedores.

Modus operandi: São ágeis e perspicazes. Aguardam um primeiro contato visual para a abordagem, e têm um tom amável, mas firme. Costumam falar no plural – muitas vezes aplicam o gerúndio (e de modo equivocado) - além de demonstrar interesse exagerado seja qual for sua resposta.

Como agir: Ao perceber sua presença, mantenha o passo firme, decidido e jamais estabeleça contato visual. Utilize todas as armas a seu alcance: comece a falar no celular, leia o que estiver à mão ou faça uma cara de dor - é permitido simular um problema estomacal e andar mais rápido).

Alerta: Essa espécie não consegue esconder a reação quando contrariada e pode demonstrar certa agressividade quando não atingem o objetivo. Esteja preparado.

2) Simpáticos por vocação (ou carência)

A simpatia, nesse caso, não se trata de algo desenvolvido, aprendido, mas um dom. Até por isso, é mais difícil de identificar, no primeiro momento, a presença dessa espécie. Podem tomar formas variadas, como a de uma sorridente senhora, um alinhado executivo ou até mesmo uma inofensiva enfermeira.

Modus operandi: Costumam iniciar uma conversa banal, muitas vezes em uma situação em que você e ela não estão sozinhos. Agem em filas de banco, viagens longas (de trem, ônibus ou avião) ou qualquer outra situação em que haja espera.

Como agir: Jamais responda ao contato, que pode ser um simples: “Que fila demorada, não?”; “Será que o ar condicionado está quebrado”, ou qualquer coisa do gênero. Alguns utilizam-se do contato físico, como uma cutucada nos ombros. No último dos casos, faça-se de estrangeiro ou surdo-mudo para não dar andamento à conversa.

Alerta: Não tenha piedade. Uma simples resposta, inocente e monossilábica que seja, pode significar horas e horas de conversa, que na maioria dos casos se converte em monólogo, já que essa espécie não está acostumada a ouvir, mas a falar.

O caso do Miguel do sebo

Se você estiver cansado das abordagens dos simpáticos suspeitos, sugiro uma ida ao Sebo do Miguel, em Perdizes, São Paulo. Não se assuste com a centena de livros aparentemente espalhados de qualquer maneira e prestes a caírem das prateleiras. Há uma ordem, e ela se chama caos. Miguel fingirá que não notou a sua presença. Após 20 minutos de procura de um livro, você se dará conta de que não encontrará nada sem o auxílio do Miguel. Pule a parte do protocolo de iniciação da conversa (“bom dia” ou “boa tarde”) e vá direto ao ponto. Não pergunte se tem um livro de tal autor. Pergunte se tem tal livro. Ele dirá que sim. Se você não pedir para ele te mostrar ou dizer onde está, a conversa vai terminar por aí. Se for um livro mais trabalhoso de achar, Miguel vai perguntar: “Você vai comprar?”. Só diga que sim se realmente for comprar. Se o primeiro contato foi bem-sucedido e Miguel tiver ido com a sua cara (ele deixa isso claro já no primeiro momento), peça a ela para, um dia, quem sabe, lhe mostrar os vinis. A resposta será: “Tudo bem, venha um dia com tempo e dinheiro”. Mesmo que você estiver com tempo e dinheiro naquele dia, não insista, porque ele não terá tempo – mesmo que aparentemente (e provavelmente) não esteja fazendo nada naquele momento.
Com o tempo e as constantes idas ao sebo, você vai se dar conta de que Miguel só trata dessa forma quem ele realmente gosta. Vai perceber que entrarão outras pessoas no local e que ele dirá que não tem um livro que tem, ou que está fechando (mesmo sendo três horas da tarde).
Se Miguel tiver gostado muito de você, um dia vai sugerir livros e até brincar com a sua namorada – que você levou pela primeira vez para conhecer a figura e o local. Frases do tipo “o que uma mulher tão bonita e educada como você está fazendo com um rapaz como ele?” são prêmios que poucos que frequentam o sebo podem se vangloriar de ter recebido. Se acontecer contigo, comemore: você fará parte do seleto grupo de pessoas que Miguel gosta de receber.

Henrique de Melo Sabines, mineiro, 30 anos, trabalha na ECT e se dedica à astronomia nos fins de semana. Fã de Drummond, começou a escrever por recomendações médicas. É um dos autores do espaço Cronetas no NR.

3 comentários:

Anônimo disse...

adorável...
muito bom de ler.

Juju Balangandã disse...

Henrique de Melo, mineiro, 30 anos, rabujento e adorável. Ousei demais?

Diogo Ruic disse...

o sebo e seu dono descritos só podem ser o da Turiassú!

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