.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 22 de março de 2011

“Não sou o cover do meu pai”

Daniel Gonzaga é filho de Gonzaguinha e neto de Gonzagão. Isso não é pouco, mas também não é tudo. Embora seja recorrentemente chamado pela “grande mídia” para cantar canções de seu pai, Daniel tenta há 15 anos mostrar que tem uma carreira própria. Perto de lançar seu sexto disco e de completar 36 anos, o carioca conversou com o Nota de Rodapé sobre música, herança genética, indústria musical e sobre a vida. Parte desse papo será publicado na revista Retrato do Brasil na edição de abril (quando completa-se 20 anos da morte de Gonzaguinha). Outro pedaço da entrevista o NR publica, com exclusividade, neste espaço. Desfrutem.

Nota de Rodapé – Quando seu pai morreu você tinha 16 anos. Já sabia que ia ser músico? Falavam sobre isso com ele?
Daniel Gonzaga - Desde moleque eu participei de coro infantil, cantei com Erasmo Carlos, ChicoAnísio, com meu próprio pai. Tive banda em colégio e coisa e tal. E quando vi, já era. Meu pai era um cara chato. Falava que seu eu queria viver de música tinha que estudar. Ele me colocou na aula de piano. No final, quando ele estava gravando o último disco, conversamos sobre produção, sobre como montar um LP.

NR – Ser filho do Gonzaguinha e neto do Gonzagão abriu muita porta para você?
Cara, nunca tive ninguém pra me ajudar. Alguém pra falar: “aí Daniel, vou te botar pra tocar num lugar bacana.” Não fez, e quem fez foi em benefício próprio, por ibope. Estou tranquilo, estou fazendo meu trabalho. Vou lançar meu sexto disco, tenho mais dois de trilha sonoras, estou fazendo mais trilha pra circo. Já viajei bastante pelo mundo, já andei de perna de pau, construí minha história...

NR – Você era bem novo quando seu pai morreu. Como foi entrar em contato com as músicas dele depois?
Sou fã do meu pai. Descobri a obra ele depois que morreu. Ouvi os discos quando ele lançou, acompanhei, coisa e tal, mas quando virei músico comecei a estudar meu pai, meu avô. Comecei a ouvir forró e me amarrei, passei a entender melhor. Eu me amarro no som do meu pai, meu disco preferido é Plano de Vôo, bonitão. Pô, mas tem fase que eu acho um saco, não consigo ouvir meu pai. Passei dois anos cantando esse disco Comportamento Geral [lançado em 2008 pela gravadora Biscoito Fino]. Já não estou aguentando ouvir. Falei pra minha irmã isso e ela falou: para com isso, credo! Mas daqui a pouco volta. Agora eu tenho ouvido muito mais o meu avô. Gosto muito de rock também. Tenho ouvido bastante. É assim, depois volto a ouvir eles de novo. Ouço, choro...

NR – Acho que a maioria das pessoas que conhecem você é por causa dos especiais sobre seu pai, de você cantando músicas dele na TV. É impossível desassociar essa imagem? Deixarem de comparar?
Rolou e rola direto [as comparações]. Só que é o seguinte, a mídia rotula. E não tem jeito, a gente tem uma mídia só no país. E se você não cai no jogo, você não trabalha. E eu tenho que trabalhar, e é a mídia quem dita. Eu vou lançar mais um trabalho em abril ou maio, mas vocês vão ter que procurar pra saber se saiu, porque eles não estão interessados nisso. Estão interessados em recriar uma emoção que já não é mais aquela emoção, é outra. Eu, hoje em dia, se me chamar pra fazer tributo, não vou fazer não. E por ter recusado muito isso no início eu não ganhei espaço de mídia que poderia ter ganho. E isso foi assim até eu não desistir. Ai pensaram: “pô, o cara ta aí há muito tempo.” Já vou fazer 15 anos que sou músico e eu não sou o cover do meu pai.
"A gente tem uma mídia só no país. E se você não cai no jogo, você não trabalha. E eu tenho que trabalhar, e é a mídia quem dita.

NR – E para ajudar (ou atrapalhar) a sua voz é muito parecida com a dele...
Pois é, isso pode ser bom ou não. Depende. O que acontece é que se eu cantar em falsete nego vai rir pra caramba de mim.

NR – Quando seu pai morreu, como você encarou. Não rolou uma revolta? Se perguntou muito por que aconteceu?
Meu pai morreu em abril, minha mãe em outubro. Aí escutei aquela celebre frase: “você agora é o homem da casa.” Vou fazer o quê? Ir na TV e falar: “como eu sinto saudade”. Claro que sinto saudade. Todo mundo já perdeu alguém e sente saudades. Às vezes passo em lugar onde vi ele tocar e depois eu toquei. Isso é vida, vida que vai para frente. Tenho duas filhas, não dá tempo para revolta. Tem coisa para fazer. Colégio para pagar, sol para pegar... Não dá para ficar lamentando.

Com o pai, ainda menino.
NR – Existe uma mudança clara na carreira do seu pai. Até um ponto as letras são mais ácidas, críticas, depois ele começa a falar mais de amor, amizade. Por que você acha que aconteceu isso?
Já em 1979 ele era gravado por cantores tipo Maria Bethânia, Elis Regina, que gravavam músicas mais românticas. Acho que ele descobriu também um filão. Nessa época a coisa já estava mais tranquila em termos de repressão. Ao mesmo tempo, ele se separou da minha mãe, foi morar com outra mulher. Depois, em 1983, ele teve outra filha, a Mariana, e acho que as coisas para ele foram se acalmando. Ele já não era mais o moleque do Morro São Carlos, já era o Gonzaguinha. Estava bem, vivendo uma vida que gostava em Belo Horizonte. Acho que isso foi tornando ele mais doce e, consequentemente, as músicas dele foram ficando mais doces. Queria falar de outras coisas, aprendeu a falar de coisas que ele talvez não soubesse ou não conseguisse.

NR – Logo no começo da carreira, seu pai ganhou o apelido, bem pejorativo, de cantor-rancor. Isso incomodava ele?
Isso de cantor-rancor é furada. Meu pai era um doce, cara. Ele falava que isso não incomodava não, mas dava para sentir que isso incomodava um pouco. Imagina, era tempo de Bossa Nova, alegria, amor, sorriso e a flor. E aí aparece um cara falando da Página 13, do Comportamento Geral, um cara sisudo. E a mídia já coloca um rótulo para vender aquele cara também. Acho que ele levou isso para frente sem ligar muito.

NR – E essa fama de cara mau-humorado, fechado. Ele era assim com a família também?
Ele tinha uma postura meio sacana com as coisas. Era o jeito dele mesmo, às vezes ele estava feliz e mal-humorado. Não era uma pessoa agressiva, mas o jeito de falar às vezes muda a pessoa. Tem gente que é assim, até você aprender o jeito dele e entender. E nem sempre você pode ter o convívio com a pessoa pra tirar essa imagem.

NR – E esse papo dele de não dar autógrafo?
Imagina, tu gosta do show, se amarra na letra, chora, ai vai lá no cara e pede um autógrafo e o cara fala não. Porra, cara babaca, nunca mais volto no show! [risos] Eu vi ele levando um monte de esporro do povo, dos amigos, por causa disso. Era coisa dele, cada um tem suas idiossincrasias.

NR – Seu pai, na metade dos anos 70, fez uma coisa que, para aquela época, parecia uma loucura: lançou um selo próprio. Como ele conseguiu isso?
Era uma loucura, mas ele gravou muito pela EMI, usando os estúdios e, como hoje em dia é mais fácil o acesso, mas fácil gravar em casa, tem muita gente, muita escolha, muita opção. Liberdade criativa que a gente está vivendo. E para você flutuar nesse meio, tem que saber se vai usar os moldes antigos ou novos. Como você se posiciona sobre a pirataria, distribuição pela internet gratuita. Se antes era difícil ou fácil, hoje é difícil e fácil.

NR – Qual sua visão sobre isso?
Não tenho resposta não. Provavelmente o que vou fazer nesse próximo disco é disponibilizar as músicas no site em baixa qualidade, de graça, utilizar donativos, tipo: se você baixou e quiser deixar uma grana, deixa. Se não quiser também, beleza. E vou vender o disco físico caro, porque prensar um disco é caro. Distribuir o disco em show, ou tentar alguém que auxilie nessa distribuição. Mas não existe sair das máfias para distribuir. Não tem jeito. É complicado lançar independente, mas acho que vai dar pé.

NR – Quando o Gonzaguinha morreu, ele deixou coisas inéditas e um tal caderno amarelo. O que vai ser feito com isso?
A gente tem uma fita com 14, 15 músicas inéditas dele que estamos para lançar. E como encarte vai vir o caderno amarelo, está guardado esse caderno. Tem as letras mais antigas e a gente está vendo o que faz com as mais recentes. Estamos estudando como vai ser lançado esse material.

NR – A última música dele, Cavaleiro Solitário, tem uma mensagem que, para muita gente, é de despedida. Ele deixou bilhetes para a família também antes do acidente de carro?
Sempre que alguém vai embora a gente procura sinais de que aquela pessoa sabia, ou que era uma coisa esperada, premonizada. Ele sempre deixava bilhetes, mandava postais de onde estava, escrevia dizendo pra gente escovar os dentes, estudar música. Vamos parar com isso de sinal, a gente não sabe o que tem do lado de lá. Cavaleiro Solitário, por exemplo... Meu pai se amarrava em filme de bang-bang, de capa e espada. Na música, ele fala: ‘um cavaleiro solitário lutando pelo vaticínio das missões’. Era muito ele, o papo que ele estava levando nos últimos dias com ele. Só que infelizmente ele morreu, sacou? Junto com Cavaleiro Solitário ele fez um monte de outras músicas. Tem música que fala nome de fruta. Hoje em dia, para mim, Cavaleiro Solitário tem uma conotação triste, e só.

Ricardo Viel é jornalista e colunista do NR

Um comentário:

Maíra disse...

Ricardo, muito bom!
Quero agradecer a oportunidade de conhecer o músico Daniel Gonzaga, eu não conhecia muito sobre ele, além do que a 'grande mídia' colocou. E também por poder compreender, se isso é possível, mais um pouco Gonzaguinha. Que tenho como um dos nossos melhores músicos.
Espero a revista sair para ler a entrevista toda.
Grande abraço.

Postar um comentário

Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.

Web Analytics