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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 27 de abril de 2011

O jornalismo-FHC está à cata de domésticas fugidias

Lê-se num jornal desta semana uma espécie de guia sobre como “encontrar” uma empregada doméstica, essa “mercadoria” em extinção em tempos de crescimento econômico e ganhos salariais. Há momentos em que essa profissão, a de jornalistas, regala-me um misto de vergonha própria e alheia.
Própria porque, no fim das contas, também estou incluído nesta genericamente denominada imprensa, uma expressão totalizante que abarca tudo o que de ruim pode haver no Brasil. Alheia porque... bem, desnecessário dizer como funcionam as mentes de alguns de nossos colegas. Viva o jornalismo-FHC: esqueçamos o povão, miremos a classe média.
Por que colaborar para as mudanças sociais se podemos ser importantes para assegurar mais uma tranquila noite de sono aos detentores do status quo? Por que ajudar a enterrar essa nossa instituição pós-escravagista, a doméstica, se podemos nos beneficiar de baixos salários e exploração de mão de obra? E ninguém ouse dizer que nossa renda está mais próxima da classe D que das classes A e B – um dia chegaremos lá no alto.
A questão é que os jornalistas somos, hoje em dia e via de regra, integrantes da mais autêntica classe média. Temos nascença, criança e vivência de classe média – branca e de olhos azuis, e não esta nova que o lulismo quer nos impor. Nas horas de folga, circulamos por bairros de classe média, comemos com gente de classe média e, eventualmente, ficamos contentes com a oportunidade de lamber as botas de algum representante dos estratos mais altos – de quem, aliás, fingimos ser íntimos, pois gozamos todos de informações preciosas e anseios comuns.
Ficamos até com um sorrisinho no canto da boca quando xingados por um ilustre político que more em Pinheiros, na Pampulha ou em Copacabana, afinal são pessoas ilustradas que estão a corrigir-nos essa mania de indolência. Mas usamos palavras agressivas ao entrevistar o presidente metalúrgico, um desses que não sabem ocupar o lugar a ele reservado na sociedade – somos esclarecidos e devemos ensiná-lo o funcionamento do sistema de castas brasileiro.
Nossa experiência também é de classe média. Trocamos o Complexo de Super Homem pelo Complexo de Marcelo Madureira, incapazes de nos darmos conta da realidade do país. Não fazemos isso porque somos burros, mas porque não conhecemos a realidade do país. Achamos que o Brasil é aquilo que nos chega pelo Facebook, pelo Twitter, pelo iPad, pelo iPod, pelo iPhone e pelo iQue-cara-a-fatura-do-cartão.
Conhecer as ruas, conhecer a periferia são tema proibido pelo falta de perspectiva própria ou, quando não, pela falta de perspectiva de algum superior hierárquico atolado em um mundo virtual que julga ser ultra-interessante, mas que não corresponde ao mundo real, nem em assuntos, nem em velocidade – tema para outra conversa.
Não por acaso, reproduzimos os sensos comuns de que os políticos são todos iguais, de que a classe média é diariamente torturada por ricos e pobres, de que o Estado não pode intervir no mercado (instituição mais sagrada que o Clero), de que o Bolsa Família é coisa para vagabundo – não faltam especialistas em nossas agendas telefônicas para comprovar qualquer uma dessas teses.
Nos indignamos mais com o aumento do preço da gasolina que usamos em nossos carros do que com o aumento do preço do ônibus, um transporte para pobres, não para nós, os esclarecidos. Sofremos mais com o reajuste da mensalidade escolar que com a necessidade de garantir o básico direito à educação gratuita. Gastamos 15 dias de trabalho ao ano para criticar o aumento dos planos de saúde, mas vamos uma vez por década a um hospital público ver como andam as longas filas e os maus tratos.
Em suma, não perdemos a capacidade de indignação, motor básico do jornalismo, mas nos indignamos com as coisas erradas: somos tão chiliquentos e histéricos quanto Madureira. Se pecamos pelo conteúdo, tampouco primamos pela forma. Tal como os representantes típicos da classe média, achamos que sentados no sofá, reclamando, mudaremos as situações ruins, desconhecendo que é mais fácil, mais inteligente e mais honesto com os leitores que apreendamos a realidade das ruas.

João Peres é jornalista e colunista do Nota de Rodapé

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