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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Puro desperdício do olhar

A evolução do homem não está associada, necessariamente, aos seus feitos de inovação tecnológica ou de ordem industrial. Muito menos com a produção do capital. Esses são uma consequência da nossa capacidade de usar a linguagem articulada, observar, pensar, entender e criar - para o bem ou para o mal.

Na tecnologia, por exemplo, temos um leque de produtos que facilitam tarefas cotidianas e que encurtam o tempo de espera e execução. A comunicação interpessoal é das mais emblemáticas dessas evoluções ao longo das décadas passadas.
 
O telefone celular, surgido nos anos de 1970 nos EUA, é um apêndice dessa comunicação e ganhou tamanha importância nas sociedades que virou parte integrante do corpo humano; uma extensão, algo como um terceiro braço, um terceiro olho. Esquecer esse “membro” ou não ter um é sinônimo de preocupação para quem usa ou atraso tecnológico para quem não o tem.

É como se naquele exato dia em que ele está inutilizado na prateleira alguém vai te ligar ou mandar o SMS, MMS, BBM, e-mail que mudará o rumo dos acontecimentos. E não é assim, sabemos bem. Existe um apego exagerado, como em tantas outras engenhocas materiais.

A dificuldade, eu diria, é justamente ver a vida além dessas bugigangas. E os celulares - e num futuro muito breve os tablets - são um exército de bilhões. São tantos quanto a população mundial. Para ser mais específico, neste ano, projeções indicam 7 bilhões de pessoas no mundo ante 5,1 bilhões de aparelhos celulares. Tivessem vida inteligente, dominariam o mundo como na trilogia Matrix - em que as regras são ditadas por máquinas.

A pergunta diante dessa população de aparelhos que habitam nossos bolsos, bolsas, mãos e orelhas é: por conta deles é que não olhamos mais para o céu? Não só, é claro. Da autocrítica que cabe a tantos outros como eu - sem tirar o fato de que a verticalização das cidades nos tirou o horizonte - o celular é mais um vilão que nos inibe de olhar em outra direção que não a da tela do aparelho.

O vilão maior, por falta de outro adjetivo mais adequado, somos nós. Nós que andamos enferrujados e atrofiados cada vez mais com o uso excessivo dessas tecnologias. À essa causa - cidadãos hiperconectados - o efeito é tempo menor de descanso, mais trabalho e pouca interação real. O andar cabisbaixo sempre vidrado na telinha de algumas polegadas e a imagem do cidadão teclando furiosamente no alfabeto de siglas é o puro desperdício do olhar.

Nos espaços públicos repare (caso não esteja com o mobile em ação) no movimento de massa conectado. É cada vez mais comum pessoas interagindo com o celular em vez de conversar com o amigo, esposa ou filho que o acompanha. Ali, bem na sua frente, e você, alucinando em algum buraco virtual. Goethe escreveu certa vez. “Se o olho não fosse ensolarado, não poderia avistar o sol”.

A beleza de olhar a que se refere o escritor alemão, de reparar os detalhes, expressões, hábitos e costumes é mesmo saboroso e fundamental. Não perder a capacidade de observar é um desafio que se impõe. Nossos ancestrais mais próximos na evolução, os macacos, praticam a observação com vigor e dedicação. Como eles, como sugestão, vamos equilibrar nosso pescoço em outras direções?

O amigo Caco Bressane, ilustrador desse texto combinado sob a ótica da minha pseudorreflexão desconexa sintetiza o propósito. Afinal de contas, o mesmo Goethe observou que “para compreender que o céu é azul por toda a parte não é preciso dar a volta ao mundo.”

Thiago Domenici é jornalista e um cidadão hiperconectado. Caco Bressane é arquiteto e ilustrador.

5 comentários:

Anônimo disse...

BlackBerry é o nome que se dava às bolas de ferro que se atavam aos escravos nos EUA para que eles nao fugissem. Melhor do que chamar de corrente ou coisa do gênero, apelidaram a esfera negra de cereja negra (black berry), porque elas nao eram perfeitamente redondas e se assemelhavam com as frutas. Mas de cem anos depois, a expressao volta a fazer sentido.
Boa reflexao essa, Thiago.
Ricardo Viel

Maíra disse...

Thiago. Sempre me entusiasmo com os seus textos... Boa reflexão mesmo!
...eu ainda olho o céu, as pessoas passando e cada uma com suas pressas, com suas correrias...
mas não esqueço o meu 'membro' celular esquecido...

Thiago Domenici disse...

Ricas, quando você me contou essa história fiquei entusiasmado. Aliás, o texto se deve muito a nosso papo no almoço um dia, lembra? valeu!
Maíra, obrigado por comentar, :)

Ricardo disse...

Claro que lembro. Você ainda falou que dava um bom texto e se tivesse uma ilustracao ficaria melhor ainda. Demorou um pouco, mas saiu. E ficou bacana. Valeu esperar. Abs (Ricas)

Ferréz disse...

dois meses sem celular e sou bem mais feliz,
tenho tempo pra minha filha, meu amigos
e um deles disse> - e agora pra te encontrar?
vamos fazer assim, voltar no tempo e como antigamente
você vai lá em casa, se não nos encontrar-mos.
outra frase antiga e que tenho saudade.
Eu fui lá e você não tava.
Ferréz

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