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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sábado, 19 de novembro de 2011

Os órfãos de Ratão

No mês passado, Fernando Evangelista, publicou a crônica “Os mosqueteiros” sobre um morador de rua de Florianópolis e seus companheiros caninos. Uma história que quando li, pensei: “gostaria de ter feito sobre o Ratão”.
Ratão e dois de seus companheiros no ponto onde passava
a maior parte do seu dia a dia.  (Foto: NR)


Explico: Ratão é o nome do morador de rua – senhor – que habitava até a semana passada a rua da casa de minha mãe em São Paulo, no bairro da Lapa de Baixo, na zona oeste. Já faz muitos anos que virou personagem do local, conhecido de todos e que, de uns tempos para cá, vivia acompanhado dos seus quatro cachorros.

“Dona Ziiiilda, tô com fomeeee!” gritava para minha mãe quase todos os dias quando ela saia para fazer alguma tarefa fora de casa. Sempre recebia um prato de comida, um dinheiro para a pinga que, diante do seu corpo maltratado e da falta de perspectiva, era sua companhia constante.

Do que se sabe – que é quase nada – Ratão teria sido tecelão antes de perder o emprego, família e se instalar nas ruas. É mais uma história triste de quem vive sem rumo, como relata o meu amigo Tomás Chiaverini, no seu livro Cama de Cimento – uma reportagem sobre o povo das ruas.

Não sei seu nome. Não sei sua idade. Nos cumprimentávamos de um jeito sem palavras, só um gesto de levantar o braço. Não faz muito tempo também, pouco antes de eu mudar da Lapa para Perdizes, fotografei da janela Ratão no que era o comum de seu dia a dia: ficar sentado na calçada tomando “conta” dos carros.

Se tinha comida, dividia com o bichos. Um deles, incrivelmente, andava igual seu dono, maltrapilho e arrastando uma das patas. Franzino, Ratão caminhava com dificuldades há tempos. A bengala improvisada, o ajudava a se equilibrar. Suas coisas pessoais, guardava num carrinho de supermercado.

Latiram o
dia todo

Soube, infelizmente, que Ratão morreu. Foi assassinado a pauladas. A primeira informação é que teria sido por traficantes. A segunda, que teria sido por Skinheads. Nada disso, no entanto, foi confirmado.

O rapaz que o socorreu e que ligou para o SAMU – que teria chegado horas depois – e outro morador que foi espancado com Ratão relatou que dois homens “queriam roubar o rádio novo” que ele tinha ganhado dias antes. Tentaram intimidá-lo, Ratão reagiu como pôde.

Não se sabe se os agressores também são moradores de rua. É fato que, muitos dos que rodeavam Ratão no dia a dia, eram pequenos traficantes e consumidores de drogas. Eu mesmo já presenciei o uso de crack na porta de casa.

Na mesma rua, aliás, foi o local do crime. Ratão, provavelmente, foi enterrado como indigente. As circunstâncias reais da sua morte talvez não sejam esclarecidas pela polícia. É o tipo de morte que não sai nos jornais e não gera comoção da opinião pública.

Não vou entrar neste texto nos méritos das desigualdades sociais e da merda que é tentar sobreviver sem ajuda do poder público. O fato aqui relatado, em si, se presta a uma homenagem ao homem sem identidade. Mais um.

Seus cachorros, pelo que soube, estão sofrendo e perdidos nas ruas. Latiram muito no dia seguinte a sua morte. Ficaram horas na esquina à espera do dono que não voltaria mais. Ganharam carinho e comida dos moradores antigos que tentam algum lugar que queria adotá-los.

Morrer a pauladas, sem socorro, por conta de um rádio, seria digno de um conto policial ficcional não fosse a realidade de mais um morador de rua assassinado.

Thiago Domenici, jornalista

2 comentários:

marina amaral disse...

a miséria social que mata os mendigos é mais indigente que os que vivem na rua; eles não se conformam, nós também não podemos nos conformar; parabéns pelo texto

Moriti disse...

É a tese da invisibilidade em ação. Moradores de rua são pouco vistos quando vivos e nada vistos depois de mortos. Triste.

O lance pra reagir a isso é o inconformismo mesmo.

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