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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

grito do ipiranga

No início dos anos 2000 dei cabo da minha biblioteca. Não eram estantes com livros frugais ou ganhos em festinhas de amigos-secretos. Era uma biblioteca de fina estampa. Com os clássicos, com os modernos consagrados, com os contemporâneos bem avaliados pela fortuna crítica.

Por décadas, eu a considerei o meu patrimônio. Tudo bem que eu não tivesse carro, lençóis de linho puro, bracelete de ouro. Eu tinha meus queridos livros. Para cada casa que eu mudava, a biblioteca ia junto. Só era um dissabor para os carregadores dos caminhões de mudança. Um deles praguejou: "Meu Jesus, para que tanto papel?"

Esses papéis encadernados eram meu orgulho. Alguém comentava sobre Pedro Páramo. Eu tinha. Em espanhol. Orlando da Virginia Woolf? Não apenas. Lá estavam as Ondas, Rumo ao Farol, Um teto todo seu, Mrs. Dalloway. O teatro de Martins Penna? Tinha a obra completa. Haicais? Lá estavam Bashô, Issa, Leminski, Alice Ruiz.

Meu amor pelas bibliotecas nasceu de uma perda. Em 1966, houve uma monumental enchente no Rio de Janeiro. Morávamos na Tijuca em frente ao rio Maracanã. Um rio pequeno que transbordou lama, pedras, geladeiras, bonecas e corpos. A água invadiu a casa, subiu três metros e transformou a biblioteca do meu avô, um tenentista morto em 1938, em páginas de lama.

Foram embora grandes livros. Alguns autografados. Entre eles, o Memórias do Cárcere. Graciliano Ramos e meu avô se conheceram na prisão, sob a ditadura de Getúlio Vargas. Para o lixão também foram volumes autografados do José Lins do Rego, da Eneida – essa maranhense tão boa quanto esquecida. Por fim perdeu-se um livro do próprio avô, o Ceará Colônia.

Algum tempo depois, nos meus treze anos, me tornei uma leitora obsessiva-compulsiva. Uma rata de páginas. Bastava ter letrinhas, eu as comia. Junto com o amor à leitura veio a paixão por colecionar livros. Minha biblioteca começou humilde. Em 1970, a Abril Cultural lançou a coleção Imortais da Literatura Universal. Eram tomos de capa vermelha com letras douradas.

Lembro que eu enchia a paciência da minha mãe para que comprasse semanalmente um livro da coleção. Nessa época, a grana da família era curta. Mas eu usava de veemente insistência. Consegui todos os títulos. Havia, é claro, a cumplicidade do meu pai. Ele também um leitor inveterado. Foi assim que conheci Dickens, Colette, Camus, Pirandello, Balzac, Flaubert, as Brontë e 43 mais.

Mudei de cidade. Mudei de hábitos. Mudei de computadores. Mudei de gêneros de escrita, mas segui colecionando livros. Sofistiquei a coisa. Criei estantes específicas para livros de cinema, teatro, ensaio, futebol, biografia, história. A literatura, então majoritária, ocupava as prateleiras mais nobres – nem muito altas, nem muito baixas.

Acumulei. Finalmente formei uma biblioteca digna do nome. Ficou até famosinha. Os mais chegados se referiam à biblioteca da Fê. A cada aniversário, a cada Bienal do Livro, a cada viagem eu aumentava o acervo. Até que num entardecer, no comecinho do século XXI, tive um siricutico. Chamei alguns amigos e distribui os livros. No espaço de dois dias, me desfiz de uma biblioteca montada volume a volume, década a década.

Num surto de lucidez, lampejei: não aguentava mais ter os monstros sagrados espiando, por cima dos meus ombros, as frases que eu construía na telinha do meu PC. Juro que ouvia o Machado de Assis rindo dos meus diálogos. Juro que via o Borges balançar negativamente a cabeça para os meus enredos. Sentia ao meu lado o espírito de Clarice Lispector sussurrando: não é assim.

Ora! Para eu ter a minha própria voz. Para eu eleger meus temas e minhas formas. Para escrever do meu jeito. Fosse torto, fosse reto, fosse tosco, fosse acabado, eu tinha que me libertar de todos eles. Tinha que abrir par em par as janelas e obrigá-los a partir. Só assim, eu me daria a chance de errar com alegria.

fernanda pompeu, escritora e redatora freelancer, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Carvall, especial para o texto. Nossas crônicas voltam no 12 de janeiro de 2012. Um fabuloso ano novo para todos!

19 comentários:

Anônimo disse...

Eu li um livro, Eramos seis e foi até então o único lido completo,gostei muito e fiz sucesso com as garotas da escola, matéria de prova e quem não leu, se perdeu, o 64 só até a metade não fui mais adiante pois me fazia chorar ....

Anônimo disse...

Que, em 2012, sejamos brindados com mais 50 textos deliciosos. Muita saúde e inspiração para minha querida amiga escritora! Beijos. Myriam Andrea

Regina disse...

Fernanda, que papa fina esse texto de hoje, fechou o ano demais de bom. Eu ainda não atingi a perfeição em termos de desapego, ainda me doi separar deles, ainda gosto de correr pra página e ouvir a voz de Riobaldo ou de Bentinho. Talvez devessemos escolher um livro e ser ele, como no filme do Truffaut. beijim

Wilma Monteiro disse...

BINGO!!!!!!!!

Caio Pompeu disse...

Puxa, me lembro da biblioteca da tia Fernanda. Nas minhas lembranças, elas (a biblioteca e as meninas) moravam na Capote Valente. Me lembro também do apontador fixado na mesa, do arsenal de lápis (sempre que eu ia lá, levava um de presente da tia) e do computador relativamente enorme para os padrões atuais. Curioso como tudo isso ainda está presente: na minha mesa de trabalho tenho três canecas com lápis, canetinhas, giz de cera, apontadores e um estilete. E aos poucos estou formando duas bibliotecas (uma em casa e outra no trabalho), ambas periodicamente alimentadas pela tia Fê. Coisas curiosas da vida!

Zé Mario Passos disse...

Querida, Fê. Já tinha ouvido da sua boca essa história e lendo-a agora novamente me comovi e me impressionei com seu desprendimento e coragem. Quando eu crescer, se acontecer um dia, quero ser como você. Beijos e um ano com muitas letras e cifra$ pra você.

Anônimo disse...

fê querida,
lembro bem daqueles dias quando vc se desfez dos livros.
vc tinha uma carinha feliz, apesar de tod@s amig@s estarem incrédulos com o seu desapego e generosidade.
continue com seus deliciosos textos que realmente me dão um sorriso na alma.
beijo grande
ma

Penha disse...

Me lembro que voce queria ler,ler,não sei se a sede era de ler ou de saber e quando te emprestei "FILHO NATIVO" voce me deu dois livros de presente........Essa é a Fernanda.Um ótimo e um viva aos sucessos que virão rapidamente................................Penha

Cecy Fernandes de Assis disse...

Ai,ai,ai,ai,ai, que tristeza, acabar com a biblioteca! Estou mudando de casa e a biblioteca foi, é e sempre será a melhor peça da casa. Ainda quero ouvir minha própria voz mesclada com as dos fantasmas... Eleitos. abraço e Boas Festas.

Marise Barbosa disse...

Fernanda! Que delícia! já fiz isso tambem, por outras razões. Monstros sagrados amontoados recebendo a poeira dos anos e eu jamais voltava a eles. Um ato de libertação para aquele povo todo e pra mim tambem!

Lica disse...

As vezes penso como voce. Todos aqueles grandes autores estão rindo das minhas mal traçadas linhas. Mas digo:Fodam-se! E continuo escrevinhando compulsivamente e cuidando e limpando e organizando os assuntos da minha biblioteca.
Era um tipo de estatus da classe média apresentar uma boa biblioteca em casa. Acho pena que esse habito não se perpetuou.Ainda prefiro ter o papel na minha mão,ver os desenhos que fiz enquanto lia ou perguntas. Muitas vezes discuti com os autores por não concordar com eles e as letras são grossas, bravas.
Ler no computador, não tem a menor graça!
Já tentei mil vezes me libertar da minha biblioteca, que continua se alastrando pela casa. Na estante não entra nem pó, de tão compacta de livros. No quarto,na cozinha, nos armários entre as roupas e outras coisinhas...
Penso que minha biblioteca será minha única companhia quando não puder andar mais, sair á rua. Então, não me culpo pelo meu apego.

Eliana Paiva disse...

O que faço é que, tirando os livros técnicos, renovo a minha cada dois, três meses. Conheço todos os sebos perto de casa (e alguns bem longe, também). Vendo ou troco. E assim virou uma biblioteca circulante, com a energia de um vendaval. Bjs

Fernanda Pompeu disse...

Leitoras e leitores queridos: estou adorando os comentários. As pessoas falando de bibliotecas e das suas relações com os livros, com os autores.
É como se a crônica continuasse a ser escrita por cada um de vocês. Aproveito para fazer uma errata: a escritora Eneida não é maranhense. É paraense. Minha culpa, minha máxima culpa. Por fim, mais um desejo: um venturoso 2012 para todas e todos nós!

Anônimo disse...

COMEÇO DE AURORA E UM BELO TEXTO, SOMENTE UM PORÉM, SOU MUITO APEGADA A MINHA BIBLIOTECA E CADA VEZ MAIS GANHO LIVROS PARA MINHA SATISFAÇÃO . Nesse Natal mais dois estão na minha estante e na minha vida. Um excelente 2012 para vc.

Anônimo disse...

Olá Fernanda, quem sabe nos encontraremos ao vivo em 2012. Neste ínterim, feliz ano novo, feliz texto novo, feliz tecla nova, felizes bites, uploads e downloads. jsavio

Anônimo disse...

Falando em lvros em 2011 descobri o buraquinho do desapego na biblioteca da estação paraiso do metrô. É para lá que estão indo meus livros depois de lidos e apreciados. Me encanta a idéia de que depois de depositados naquele canal para outros cantos, meu livro cairá nas mãos de pessoas desconhidas e que o livro terá seu caminho próprio.
bj Karina Wolffenbuttel

Yasmin Garrido Bruno disse...

Meu sonho de consumo era ter uma biblioteca em casa. Juntar todos meus livros (e do meu filho de 12 anos, leitor assíduo)num só lugar e distribui-los em lindas prateleiras. A vizinha tem uma bem bacana, num espaço construído no fundo do quintal. Já tive vontade de derrubar o muro que divide as casas, invadir aquele quarto e tomar posse solene! Ainda não desisti: nem de ter meu objetivo realizado, nem da invasão.
Bjs,
Yasmin Garrido Bruno

Anônimo disse...

Alice através do espelho. Carlos N.

Anônimo disse...

Quando estudei física, uma das leis me intressou bastante porque se aplicava muito bem às pessoas...
A Lei de Hooke, que refere a Rigidez/Elasticidade.

Para o tal carregador, os livros eram apenas um monte de papel.
A constância elástica dele era menor, por isso ele era "apenas" carregador...

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