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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Hoje não tem crônica

Fiquei acordado até tarde da noite à procura, num tomo grosso entre os que ultimamente ando me atrevendo a ter, de um final para esta minha primeira crônica no Nota de Rodapé – delicada trincheira de bom jornalismo com a qual passo a colaborar mensalmente cheio de imensas alegria e honra.

Pois preguei as pestanas crente de ter achado o dito cujo – qual seria uma fala do inesgotável Gabriel García Márquez. Mas cometi o pecado de não ter marcado a página onde creio ter achado a citação, de modo que já se vão duas horas que folheio, sem nem encontrar rastro dela, as 768 páginas do compêndio de suas Crônicas. Portanto, em não havendo final, convém que não haja crônica.

Uma pena, porque havia já há um par de semanas definido que começaria recordando uma outra, de Fernando Sabino, e daí passado a empreender uma colagem mental de meia dúzia de outras referências esparsas e desorganizadas sobre o assunto. Urdida, quem sabe tivesse ficado bonita.

Começaria, como disse, lembrando a crônica de Sabino intitulada “Aqueles alegres rapazes da imprensa”. Era assim que Joel Silveira se referia à geração de Sabino, lá por volta dos anos 40. “Com isso se referia não tanto à nossa condição de jornalistas, ou à nossa mocidade, mas à alegria com que exercíamos a profissão: uma alegria de amadores.”

Anos 60: da esquerda, em pé: Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Fernando
 
Sabino e José Carlos de Oliveira; sentados: Vinicius de Moraes, Sérgio Porto e Chico
Falaria de minha comoção ao saber, por Sabino, que sim houve tempos em que “a redação do jornal era o abrigo natural para quem tivesse vocação (ou simples veleidade) literária”.

Tempos em que eram raros nas redações os que não cultivavam, em paralelo à de jornalista, outra atividade – fala-se em teatrólogos, poetas, contistas, romancistas, ensaístas, músicos e por aí vai.

Tempos trocados por outros, por esses tempos de hoje do “espírito do jornalismo moderno, ou seja, uma profissão cujo exercício não exige apenas que se saiba escrever (condição às vezes até dispensável), mas para a qual hoje em dia se tira diploma em cursos especializados nas universidades e que não tem mais nada a ver com a literatura”.

Anotaria, citando ainda Sabino, que naqueles tempos havia dois caminhos para quem começava numa redação: o da notícia, voltado para grandes apurações e off the records, denúncias e certo envolvimento mais direto com política até; e o da crônica assinada. “Quem quisesse ser escritor, ia para as colunas assinadas, recebendo como simples colaborador. A única condição exigida em ambos os casos era a de saber escrever. Frequentemente fazíamos uma coisa e outra”, até que uma das duas falasse mais alto.

Endossaria então, com certa veemência, a fala de Sabino, pelo difícil que se tornou hoje, num jornal, ler quiçá um texto bem escrito. Pelo impossível que virou hoje, num jornal, viver da função de cronista.

Coluna parece que virou sinônimo de grife: para ter uma tem que ser selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado se quiser voar. Começar no jornalismo pela via da crônica, hoje nem mais isso existe – virou pretensão imberbe, audácia de principiante.

Salvo se o candidato for tetradiplomado aos 22 anos, ou tiver pai famoso, ou for membro de alguma patota, ou tiver bombando no twitter e no face, ou (mas aí já é coisa mais rara) for amigo do filho do dono, talvez filho de um amigo dele.

Gabo : “sempre acreditei que a boa escrita é
a única felicidade que se basta a si mesma”.
E sustentaria que me questiono sinceramente sobre se, nas condições em que atualmente nascem os jornalistas, teria o jornalismo parido um Rubem Braga da vida.

Cronista desde os dezesseis ou dezessete anos, o Velho Braga provavelmente não teria encontrado hoje espaço para forjar logo cedo seu ofício da vida toda.

Citaria o próprio, na emenda: “O cronista de jornal é como o cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai”, diz em sua crônica “Manifesto”, à guisa de estabelecer a diferença entre cronistas e escritores “que fazem livros que são verdadeiras casas, e ficam”.

Alertaria para a modéstia de Rubem – na verdade, a do Velho Braga, personagem de si mesmo que emerge da vastidão solitária de suas crônicas, “obra que talvez se conte entre as poucas de lugar assegurado na literatura brasileira contemporânea”, para encerrar com Sabino.

Lembraria que a modéstia não é só de Rubem, mas traço dos grandes cronistas. Feito a de Stanislaw Ponte Preta (ou Sérgio Porto, nunca sei quem criou quem).

E reproduziria, conduzindo descaradamente o leitor no rumo de minha tese, uma nota de rodapé de seu “Perfil da Tia Zulmira”: “Certa vez um cronista mundano, para valorizar as próprias besteiras, disse que Proust, antes de ser Proust, foi cronista mundano. Tia Zulmira gozou a coisa, dizendo que Lincoln também foi lenhador e, depois dele, nenhum outro lenhador conseguiu se eleger presidente da República.”

Já pensando em concluir, lamentaria a falta que faz a boa crônica, bem franca e desabrida, provocado pelo que afirma Fabiana Moraes, jornalista e socióloga, em sua colaboração para o número de novembro de “Pernambuco”, suplemento literário da ótima revista “Continente”.

Azar o meu de não ter marcado a página – crônica é assim, coisa ligeira: se não fisgar direito, foge da gente, que nem peixe querendo voltar pra dentro d’água.

Atenta aos avanços de certo “jornalismo da lareira”, feito para agradar o leitor de maneira, digamos, cuti-cuti, ela questiona “uma profissão que hoje parece se dirigir muito mais a um consumidor/espectador, e não a um leitor que pode reorganizar suas práticas a partir do que está escrito – inclusive questionando o que está colocado”.

E indagaria, sorrateiro: “Será por falta (crônica) de crônica?” Ciente de que o espaço é sempre mais curto que a compridez do assunto – regra de ouro, aliás, da boa crônica –, apressaria um arremate. Entraria justo aqui o trecho de García Márquez que achei ontem e perdi hoje.

Folheando, vi até outros bons, inclusive um bonito em que ele diz que o objetivo de suas crônicas para jornal – com as quais começou a ganhar a vida aos vinte – é “que sempre estejam bem escritas (…), pois sempre acreditei que a boa escrita é a única felicidade que se basta a si mesma”.

Mas esse trecho não serve. Queria mesmo era um pezinho de página preciso em que ele diz que não entende o porquê de se fazer hoje em dia, via de regra, jornalismo com tanta pressa e tão parcas inteligência, criatividade, alegria. E transcreveria o par de linhas em que ele diz que preferia o tempo em que se fazia jornalismo para se falar de como são as pessoas.

Azar o meu de não ter marcado a página – crônica é assim, coisa ligeira: se não fisgar direito, foge da gente, que nem peixe querendo voltar pra dentro d’água.

Ou quem sabe aquele trecho nem exista, e talvez eu o tenha sonhado. E então, nesse caso, minha crônica perderia o sentido – razão pela qual a de hoje vou-lhes ficar devendo.

Ricardo Sangiovanni, jornalista, coordena o blog O Purgatório e estreia hoje no NR a coluna Mistério do Planeta, com um texto mensal toda primeira quarta-feira do mês corrente.

3 comentários:

Fernanda Pompeu disse...

Ricardo, que arguta estreia.
Bem-vindo ao Nota de Rodapé - nave louca e exata ao mesmo tempo.
Nave que tem como timoneiro o Thiago, o mais ponta firme editor que conheço.

ana mendes disse...

Olá Ricardo!
Adorei a crônica! Vou pegar algumas referências que tu citou para ler. Rubem Braga, por exemplo, nunca naveguei...

Bem vindo!

thiago domenici disse...

:) gracias, Fê! E viva vocês!

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