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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O sujeito (extra)ordinário

Ao chegar no topo da escada no piso superior do prédio é o Luiz, vestindo a camisa de São Jorge, que me recebe com o primeiro sorriso da noite. Na lenta caminhada até a mesa onde costumo sentar vou cumprimentando a todos: músicos afinando os instrumentos de um lado, amigos de copo do outro.

Ali, na minha mesa cativa, já me sinto em casa e em poucos minutos um brinde dá início a ininterrupta conversa dos ébrios. “Bebe que a vida é outra!”, diz uma amiga com seu timbre negro. A noite está só começando.

O Clube do Choro de Porto Alegre se transformou em tema de um documentário há quase cinco anos, quando eu e uma amiga procurávamos um bar para nosso deleite estético e etílico. Ela é desenhista e na época estudante de História, eu, fotógrafa, estudava Ciências Sociais.

Tínhamos este projeto em comum, dedicar noites e noites a um bar, registrar acontecimentos, conversar, beber com os frequentadores e aos poucos ir recolhendo histórias de bar. Aquelas que são contadas na euforia da noite, entre goles de cerveja, por um amigo completamente desconhecido, que tornou-se instantaneamente íntimo.

A idade dos frequentadores do Clube do Choro varia entre 60 e 90 anos. Este grupo que se convencionou a chamar de terceira idade nos instigava. Uma rápida descrição das pessoas que frequentam o lugar levaria a crer que se trata de um baile onde senhores e senhoras vão, às vezes, para se distrair um pouco. Eu, aos meus vinte e poucos anos, me deparava com eles e admirava a intensidade com que desfrutavam a música, a dança, a bebida e a paquera.

Distribuídos neste espaço estão músicos, boêmios e admiradores; frequentadores assíduos, amigos ou velhos conhecidos que se reencontram por meio da música e das histórias que compartilham. É possível reconhecer no local um universo de relações que se arranjam ao ritmo do choro, da valsa, do samba, da marchinha.

No Clube do Choro de Porto Alegre reverberam os ecos de uma juventude vivida entre as boates do bairro Cidade Baixa tais como Pandeiro de Prata e Chão de Estrelas. A origem do Clube se sobrepõe a história de músicos e bares famosos da década de 60 e 70. Túlio Piva, contemporâneo de Lupicínio Rodrigues, um dos fundadores do Clube, foi dono de uma das boates mais famosas de Porto Alegre dos anos 60: Gente da Noite.

Entre os homens, o traje mais comum é o terno. Os mais despojados, usam camisa ou camiseta gola polo e jeans. Hélio é reconhecido pelos belos trajes e consagrou sua fama depois que foi vencedor de um concurso de beleza promovido pelo Clube. Desde então tornou-se rima, transmutou-se em poesia. “Este é Hélio Cardoso, o coroa mais charmoso”, apresentam-lhe.

As mulheres, vaidosas, usam maquiagem, anéis, brincos, colares, unhas pintadas e bocas vermelhas. Há um equilíbrio entre o sóbrio das roupas e o brilho dos acessórios, havendo um cuidado extremo para não errar nas combinações. Se as roupas são discretas, as personalidades não.

Dione afirma veementemente que pendurou as chuteiras, “homem, nem pensar!”, Elza, sua amiga diz provocativa “eu tenho mais sorte...”. As duas estão sempre conjecturando sobre o assunto. Se chegam ovos de codorna pelas mãos do garçom à mesa de alguém elas riem e falam entre os dentes: “é afrodisíaco!”.

Faz cinco anos que revisitamos, todas as quintas-feiras, nossos velhos amigos e interlocutores para lhes ouvir contar sobre amor, saudade, alegria, boemia, solidão, paixão. É na exaltação destes sentimentos que damos asas aos nossos narradores.

O filme está em fase de montagem, com previsão para ser lançado em maio deste ano. O que vai prevalecer é a vida ordinária e corriqueira como a minha e a sua. Porque contar histórias é, talvez, a melhor maneira de enriquecer a vida.


[Direção: Ana Mendes e Natália Chaves Bandeira]

O título do texto é inspirado no livro Cinema do Real, organizado por Maria Dora Mourão e Amir Labaki. São Paulo: Cosacnaif, 2005. Já o filme do Clube do Choro está sendo produzido pela Panda Filmes com financiamento da Prefeitura de Porto Alegre/FUMPROARTE 2010.

Ana Mendes, 26 anos, gaúcha de nascimento, errante de coração e profissão. Fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Trabalha como fotojornalista freelancer entre Brasília e Porto Alegre. Mantém a coluna mensal Faço Foto.

10 comentários:

Suzana Azevedo disse...

Parabéns Ana e Natália! Belo trabalho. Fiquei com gosto de "quero mais"! Que maio chegue logo para ver o filme na íntegra! Bjs

izaias almada disse...

Que maravilha, saber que estou conhecendo uma cineasta gaúcha. Parabéns!
E que venham outros filmes com ou sem boemia.
Bjs.,
Izaías.

Ana Marcela disse...

Cinco anos já?!
To ansiosa por esse filme! Um trechinho só, nao vale!
beijos saudosos, amores.

Cled Pereira disse...

A sua descrição do Clube me deu vontade de me teletransportar pra esse lugar cheio de histórias. Quero muito ver esse filme, vem fazer uma pré-estréia aqui em Brasília.

Lisandro Moura disse...

Muito legal, Ana! Parabéns pelo ótimo trabalho! O texto já está lindo, só imagino o filme! Vamos fazer exibições aqui em Bagé! Um beijo!

Andy Marshall disse...

Belo trabalho Ana Mendes.

Neide Cpinto disse...

Parabéns Ana, que trabalho lindo! Também quero ver mais. Muito sucesso para vocês. Abraço

abuelitapeligrosa.blogspot.com disse...

Estou esperando ansiosa o filme de vocês. E sabe que vocês me deram uma ideia? Vou procurar o Clube do Chorinho para exorcisar as teias de aranha do meu espírito. Faz 6 anos que pendurei as chuteiras. Era boemia de carteirinha, fui morar no NE, o marido morreu e... pois é.
Boa sorte a vocês. Um abraço.

Anônimo disse...

Muito interessante, Ana Mendes. Quando for maio, nos avise pra saber como assistir. Parabéns pelo trabalho, do leitor do NR, Fredo Sidarta

Tânia Regina Maycá disse...

Bah! Ana que maravilha, esta turma é maravilhosa e com certeza merece ser mais divulgada.
Mostrar ao nosso povo o valor da melhor idade, enquanto se vive tudo é permitido, tanto no aprendizado como na vivência, divertindo-se com boas musicas, junto à pessoas que valorizam, o que outros seres humanos tem de bom pra nos ofertar, assim como esta tua iniciativa.Parabens,
Obrigada! To anciosa pra ir e curtir, já tempos atrás andei lá, adoro cantar e dançar, fiz até um vídeozinho, ta no youtube, meu neto foi quem gravou, muito boa tua idéia. bjs. Tânia Regina Maycá.

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