Às vezes a gente até finge que acredita. Até espera que, quando o garçom chegar com a cerveja, o bar será imediatamente tomado por gostosas decotadas, piscando os cílios compridos e mandando beijinhos. Mas, no fim, a gente sabe que vai acabar cercado pelos mesmos amigos barbados e barrigudos de sempre. Até aí tudo bem, há que se ter alguma fantasia na vida, ainda que apenas nos trinta segundos do comercial de cerveja.
Mas tudo tem limite.
E outro dia, enquanto escovava os dentes no meu pequeno e reconfortante banheiro, fui atingido por uma epifania. O limite há muito havia sido rompido.
Pois escovava eu os dentes, a mente devaneando como geralmente ocorre durante a execução desses automatismos higiênicos, quando minhas retinas pousaram sobre uma coleção de desodorantes que tenho sobre a janela. Há meses venho tentando achar um que não seja fedorento, não deixe manchas brancas nas camisas e não me torne repelente ao fim do dia.
“Quarenta e oito horas de proteção” anunciavam as letras metálicas de um tubo prateado, moderno qual uma cápsula espacial. Será mesmo?, pensei comigo mesmo enquanto dava um trato nos molares superiores.
Passei pro desodorante seguinte. “Proteção absoluta a cinquenta e oito graus”. Quente, não?, e pulei a vista para o outro aerossol: “Protege a até oitenta graus”. Li de novo. Era isso mesmo: “Protege a até oitenta graus.”
Vejam, perfumados leitores, eu já passei calor nesse mundão em aquecimento. Morei meio ano em Manaus, fiquei uma hora preso num ônibus lotado e com janelas lacradas no deserto do Saara, enfrentei infinitas horas de congestionamento com sol a pino. Mas oitenta graus?
Pelas axilas do capeta, é quase o dobro da temperatura média de Cuiabá!
Já nos molares inferiores, segui pensando em como tinha surgido essa ideia. Algum publicitário deve ter começado lá pelos trinta e cinco graus. Calor, suor, cheiro de sovaco, tudo bem, guri, está indo bem.
Desesperada com tamanha genialidade, a concorrência foi até São Google e conferiu a profusão de paragens neste globo onde a temperatura costuma ultrapassar os quarenta. E assim foi, cada marca subindo um tiquinho o número, torcendo pelo derretimento total dos pólos, até chegarmos ao cúmulo dos oitenta graus. Um número que, aliás, deve seguir subindo. O céu, ou, no caso, o sol é o limite. “Protege a até seis mil graus”, prometerão os desodorantes de nossos filhos.
Meu raciocínio foi assim, tão sem rumo que perdi a conta dos molares já escovados, mas segui nos devaneios. Fiquei imaginando as pessoas diante da prateleira dos desodorantes.
Roll-ons, sprays, aerossóis, sem perfume, extra-secos, para homens, para mulheres, para clarear axilas, para roupas pretas, para roupas brancas. Será que nesse profícuo campo de qualidades a resistência a altas temperaturas cativa clientes? Será que alguém lê o rótulo e pensa “ah, esse aqui protege a até oitenta graus. Deve ser bom mesmo”.
E, afinal, protege do que? Do calor? Bombeiros seriam aconselhados a borrifar uma camada caprichada do spray mentolado antes de enfrentar arranha-céus em chamas? E como faz? Passa no corpo inteiro ou só nas axilas (nome publicitário do sovaco)?
Porque, se for pra proteger do mau cheiro, pra evitar o “cc”, tem alguma coisa estranha. Supondo que eu, por algum dos meus incontáveis pecados, fosse condenado ao inferno: algo como um coletivo lotado, mantido a constantes oitenta graus. Ora, meus companheiros de danação que me perdoem, mas minha última preocupação seria com o cheiro das axilas.
Assim seguia eu, escovando, pensando e lendo os rótulos dos meus desodorantes até que, num leve salto visual, cheguei à caixinha da pasta de dente. “Um tom mais branco por semana”, prometia a brilhosa embalagem.
Era o creme dental que, naquele exato momento, eu estava usando para polir meus incisivos. Olhei para o tubo sobre a pia. Quase no fim, já naquele estado em que temos que apertar com o cabo da escova pra sair alguma coisa. Fiz as contas mentalmente.
Jesus!
Devia estar usando aquilo há mais de um mês. E era o segundo ou terceiro tubo da mesma marca. Aproximei o rosto bem perto do espelho e, levemente apreensivo, abri um sorriso.
Ufa.
Não tinha surtido o efeito prometido. Nenhum dente transparente.
Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha. Ilustração de Kelvin Koubik, artista visual e músico de Porto Alegre, especial para o texto
Um comentário:
Esse texto do Tomás, com as ilustrações do Kelvin me atrairam como aquele desodorante atrai mulheres na propaganda. Gostei da reflexão e do traço. Será que perto do sol esses desodorantes não derretem? Abraço
Postar um comentário
Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.