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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Ginga no Pé Futebol e Samba

Uma bola, um tambor. Todo brasileirinho cresce chutando, cresce batendo. O Brasil também foi feito assim. Com futebol e samba. No estádio e na avenida, dois pilares de nossa cultura traçaram, ao longo das décadas, trajetórias com algumas semelhanças, diferenças e alguns momentos em que convergiram de maneira enfática.

O samba, produto brasileiro, gerado com a miscigenação que trouxe elementos da África (o batuque), da Arábia (pandeiro), da Península Ibérica (as cordas) e do próprio Brasil nativo (chocalho), nasceu favelado, suburbano, marginalizado. Desenvolveu-se com particularidades regionais Brasil afora. No Rio de Janeiro, ganhou o formato que o tirou do folclore e o inseriu na música popular urbana brasileira.

Nasceu amador. Tinha uma casa. Para o sambista, um palácio. E ele foi amador enquanto sua Escola de Samba também foi. Quando gravava, fazia shows e ganhava dinheiro, não era um sambista profissional, continuava amador, apenas destacava o lado artista, que cumpria esse papel. Mas aos poucos, o sambista foi perdendo sua casa. A Escola de Samba não era mais um espaço para se cantar samba e encontrar os amigos de comum paixão. Os desfiles, antes, feitos para brincar, hoje são produtos de uma grande indústria, cujo espetáculo visual é um grande programa de televisão.

O futebol no Brasil também é um grande negócio. Como os desfiles de carnaval, gera cifras cada vez mais vultosas. Como o samba, nasceu amador. Marginalizado, não. Para poucos, brancos e ricos. Mas o negro entra na história com a ginga – palavra que é, ao mesmo tempo, samba e futebol – e tudo muda. Como o samba, vira mestiço.

Nos idos de 30 e poucos, o futebol viu vários clubes se profissionalizarem, mas outros tantos permaneceram assim, como os sambistas e os boleiros em geral, amadores. E quando o palácio do sambista, o terreiro de sua Escola, deixa de cumprir o papel socializador, agregador e catalisador cultural, é a várzea que traz o samba à cena. Ali, estão o tambor e a bola, novamente.

Resistência
da várzea

Fica no Bom Retiro, mas, na verdade, trata-se de uma embaixada barrafundense, visto que a agremiação teve sua primeira sede naquele bairro. O Clube Anhangüera (as reformas ortográficas não derrubam a tradição), fundado em 1928, promoveu muita gafieira em sua história. Ao lado do gramado, um salão, um baile, e por muito tempo foi assim.

Mas qualquer história sempre reserva um período de seca após a bonança. E o clube já ia colocando sua tradição no banco de reservas quando tudo mudou. Dia 18 de maio de 2007, um dia especial na história recente do samba em São Paulo, nascia o “Anhangüera dá Samba!”. Unindo a sede com a vontade de beber, deu sequência à história social da agremiação e se tornou uma nova casa para os sambistas, despejados de seus lares – as Escolas.

Desde então, dezenas de rodas de samba animaram o local, primeiro com o conjunto Inimigos do Batente, formado por sambistas de vários cantos de São Paulo, e depois, com o Batalhão de Sambistas, grupo paulista que promove a valorização do samba de terreiro, gênero praticado nas antigas Escolas de Samba do Rio.

Bambas dos mais altos quilates, das maiores envergaduras, passaram por lá: Wilson Moreira, Nei Lopes e Elton Medeiros. A Portela, com Monarco, Tia Surica e Noca. A Mangueira de Tantinho. O partido alto de Ary do Cavaco (que faleceu dias depois de sua apresentação) e Luiz Grande. A Paulicéia de Germano Mathias, Osvaldinho da Cuíca, Silvio Modesto, Dona Inah e João Borba.

Celebrando o passado, mas olhando para o futuro, valorizando o presente. Assim, novos compositores, como Douglas Germano, Edu Batata e Kiko Dinucci, também tiveram espaço, bem como Paulinha Sanches e Eduardo Galotti, sambistas de vasto repertório, figurinhas carimbadas nas rodas de samba do eixo SP-RJ, respectivamente. Nomes que deverão ser destacados em colunas posteriores.

Independente, sem patrocínio ou subvenção, há um nome por trás destas realizações que merece ser destacado: Arthur Tirone, o popular Favela, neto de fundadores do clube, criado na várzea e no samba, um militante das tradições populares brasileiras. Um batalhador, um bravo.

Arthur Favela fez do projeto um encontro de sambistas tradicionais na cidade, realizado por mais de quatro anos. As enormes dificuldades financeiras – muitas vezes, ele tirou dinheiro do próprio bolso para que o evento pudesse ocorrer – levaram o projeto ao fim, em setembro de 2011.

Durante os primeiros meses de 2012, o Clube não recebeu nenhuma roda de samba e a preocupação de que tal espaço não mais pudesse servir de casa aos amantes do ritmo era evidente. Mas, desde abril, o espaço voltou a receber, mensalmente, o Batalhão de Sambistas. E assim, o samba segue ecoando no Bom Retiro.

Nesta sexta-feira, 22, um dos maiores expoentes se apresenta por lá. Roberto Silva, o “Príncipe do Samba”, 92 anos de vida e 74 de carreira artística, o último dos sambistas da Era de Ouro vivo, dá provas que a luta, árdua, dá frutos saborosos. Fruto de um trabalho amador, no sentido estrito da palavra.

Escute o samba "Indecisão", de Paulo Marques e Aylce Chaves,
na voz de Roberto Silva, o "Príncipe do Samba". Gravação de 1958.

André Carvalho, jornalista, estreia hoje a coluna mensal Batucando, sobre samba, a ser publicada sempre na terceira quarta-feira do mês.

Um comentário:

Thiago do Nascimento disse...

Parabéns André"Piruca",você merece tudo que há de melhor. Será um prazer acompanhar a sua coluna. Abraços.

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