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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Dizem que o povo gosta

No momento em que desenvolvo uma interessante pesquisa sobre um dos maiores homens de teatro do Brasil, falecido em 2009, tenho lido não só sobre ele, como é natural, mas, sobretudo, os seus próprios textos. E nesse aspecto a produção de Boal tem bastante fôlego. É consistente.

No momento, entre outras, estou lendo sua obra “O Teatro Como Arte Marcial” (Ed. Garamond, 2003) que contém uma série de reflexões do mestre sobre a arte de Sófocles, Shakespeare e Brecht, para ficarmos apenas em três nomes sonantes.

Em nome de um teatro político, de intervenção social, Boal fala sobre tudo e escarafuncha o individual e o social com as lentes da dialética, muitas vezes não deixando pedra sobre pedra. Escreve com impagável ironia e rigorosa linha de raciocínio. Sua tese: todos nós somos atores, ou, espect-atores, como gosta de dizer. O teatro não é uma atividade para iluminados.

Vejam, por exemplo, sua opinião sobre o deserto de ideias que é a televisão. À página 125 do livro citado, Boal escreve um artigo com o título acima e que passo a reproduzir:
“É “disso que o povo gosta” – assim justificam os canais de televisão a qualidade execrável de muitos dos seus piores programas.”

“Fosse válido esse argumento, estariam nossas escolas autorizadas a substituir as difíceis matemáticas, a última flor do Lácio e a filosofia kantiana por fáceis aulas práticas do sensual Kama Sutra, porque é disto que o povo gosta...”
“Nossos museus exibiriam, em lugar de obras primas da pintura renascentista, as esculturais coelhinhas da Playboy, ao vivo, porque disto a máscula metade brasileira sempre foi ávida – disto o povo gosta, e com apetite.”
“Nossos hospitais, em vez de médicos e medicamentos, empregariam homens de terno e gravata operando histéricos, descarregos, sacerdotes de variadas religiões eletrônicas, porque, infelizmente, as curas milagrosas são o refúgio de boa parte da nossa ingênua população, que disto gosta ou isto teme: das televisivas bocas pastorais jorram labaredas do ameaçador diabo tridentino, rouco e fanho, exigindo o dízimo, em horário nobre!”

“Outro argumento, falaz como primeiro, diz que a TV deve mostrar a crua realidade tal como é, sem grinaldas nem guirlandas. Para este efeito, proliferam policiais perseguindo bandidos em alta velocidade; casais acusando-se de caleidoscópicas infidelidades e promovendo físicas violências diante das ávidas câmeras; portadores de exóticas deformidades lamentando a sorte ingrata e o cruel destino. Realidades são: existem! Quem duvida? Realidades banais, vidas vazias, sem rumo, sem sal. É assim mesmo, dizem, é a vida como ela é...”

“Mas – cabe a pergunta – a vida de quem? Não existem outras vidas neste Brasil imenso? Seremos todos reles idiotas?”

“Nestes últimos anos, no Brasil, seguindo a trilha de vários outros países do mundo, assistimos à proliferação do pior e mais nefasto dos programas que já surgiram nessa fábrica de vacuidades que é a TV: os reality-shows.”

“Neles, pessoas insossas – sem o menor interesse intelectual, sem que se destaquem artística, política ou socialmente, nem sequer pelas tatuagens impregnadas em seus ombros, costas, nádegas e cóccix – ficam encerradas em uma casa sem nada dizer ou fazer, nenhum objetivo a perseguir a não ser o de permanecer em cena o maior tempo possível atraindo a atenção dos camera-men, esperançosos de um close-up.”

“As telenovelas – mesmo de trama inverossímil e flácida, mesmo superficial e anódina – mostram relações humanas estruturadas segundo certos valores morais e políticos... mesmo discutíveis. Já os reality-shows, ao optarem pela ausência (aparente) de qualquer trama preconcebida, ao deixarem que tudo aconteça ao sabor do acaso, e pela total falta de lucidez de pensamento, nada oferecem a não ser o despropósito daquelas vidas psiquicamente vegetativas.”

“Vidas fragmentadas e míopes, sem metas em longo prazo, nas quais a maior preocupação ontológica dos personagens é abrir a geladeira e a reclamar da falta de uma boa pizza; sua maior angústia, o telefone que não toca.”

“Essa fragmentação se assemelha ao cotidiano igualmente fragmentado da maioria dos telespectadores que são, assim, confortados em suas vidas despropositadas.”

“Qual o universo vocabular desses reality-shows? Talvez não alcance as básicas duzentas ou trezentas palavras usadas comumente na TV, mesmo se incluirmos artigos e pronomes, interjeições e nomes próprios e as freqüentes onomatopéias. Que idéias inteligentes poderá gerar esse esquálido repertório léxico? Talvez somente uma: desliguem suas TVs.”

O texto de Boal é longo e continua a tratar o tema com fina ironia. Peço licença aos leitores para um salto no texto e ir para a sua parte final onde se pode ler:
“Mas a TV – para quem é isso que o povo quer! – só nos mostra um casal vestido de nudez caçando sabonetes na banheira de meia água ou fornicando atrás da porta; mostras socos, tiros, explosões, e nos faz pensar que as torres gêmeas fazem parte do enredo das Aventuras do Homem Aranha – filme que, aliás, foi banido depois do 11 de setembro, porque as semelhanças eram chocantes, e o sádico prazer de alguns espectadores seria bem maior do que o recomendável patriotismo.”

“Na pequena tela, a vida vã e fútil importa mais do que a destruição da camada de ozônio ou da floresta amazônica: o fogo, de longe, não se vê; na tela luzem sorrisos.”

“Hoje, no Brasil, ninguém é inocente”
Izaías Almada, escritor e dramaturgo, mantém a coluna mensal Pensando Alto

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