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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Esquadrão da gema mole

Eis que o Kassab resolveu restringir a distribuição de sopa para moradores de rua. A medida absurda virou uma bola de neve nas redes sociais, organizou-se um sopaço na frente da casa do prefeito e as autoridades, um olho na sopa outro nas eleições, trataram de voltar atrás. De qualquer forma, mais uma vez veio à tona essa mania de proibir tudo, que parece parte do DNA Serra/Kassab, que está deixando o mundo mais chato e que, ao mesmo tempo, pavimenta um caminho perigoso.

As leis deveriam ser feitas no intuito de manter nossa espécie agressiva e autodestrutiva num estado mínimo de harmonia. Os reacionários tendem a confundir as coisas. Acham que elas têm a função de deixar o mundo mais limpinho e arrumado, parecido com alguma ideia pré-concebida de paraíso que lhes tenha sido inculcada na infância.

Quando eles são levados a sério, criam-se leis estúpidas que diminuem a liberdade dos homens, quando, na verdade deveriam fazer justamente o contrário. Deveriam ser construídas de modo que cada um pudesse desfrutar o máximo de liberdade sem causar grandes prejuízos aos vizinhos (algum prejuízo é inerente à existência). Em outras palavras, a liberdade de um termina quando começa a liberdade do outro.

Dentro desses limites, seríamos livres para: distribuir sopas a quem quiséssemos, comer vinagrete na barraca do pastel, batatinhas com gorduras trans, galinha à cabidela, ovo com gema mole, fumar embaixo do toldo, e beber na calçada depois da uma da manhã (tudo isso entrou na lista de proibições da prefeitura paulistana).

Quando se trata dos limites da lei, o meu exemplo predileto é o da obrigatoriedade do capacete. Gosto desse exemplo porque ele é extremo e porque sempre que o uso sou prontamente enxovalhado.

A questão é a seguinte: se a cabeça é minha, eu deveria ter o direito de fazer com ela o que bem entender, inclusive amassá-la contra um poste ou embaixo de uma carreta na marginal.

O argumento contrário geralmente se baseia no fato de que, caso arrebente desnecessariamente minha cabeça, estarei causando prejuízos ao nosso sistema de saúde, aos cofres públicos e, consequentemente, a toda a sociedade. É fato. Mesmo quem tem plano de saúde, quando se estropia de moto acaba recolhido pelo SAMU, ou pelos Bombeiros.

É um argumento válido. Mas fico imaginando como pode ser perigoso nas mãos de unhas bem aparadas e cutículas bem tratadas de nosso nobre prefeito. O que aconteceria se fosse levado ao extremo. Qual um eco da distopia de George Orwell veríamos nossos governantes ganhando ares definitivos de Big Brother (o do livro, não o do Bial).

Qualquer comportamento diverso do exemplar, do politicamente correto, do irrepreensivelmente saudável, qualquer ato que pudesse nos colocar em algum nível de risco, seria legalmente passível de repreensão.

Acabaríamos obrigados a fazer exames rotineiros para conferir níveis de glicemia, colesterol e condições gerais do organismo, índices posteriormente submetidos à aferição da prefeitura. Números fora dos padrões resultariam em multa. Teríamos fiscais visitando nossas geladeiras de surpresa, apreendendo barras de manteiga, filões de bacon e outras ameaças gordurosas. Seríamos financeiramente repreendidos ao correr pra pegar o ônibus, ao voltar pra casa depois das onze, ou ao ouvir música alta nos fones de ouvido.

Tudo parece bem absurdo. Mas, pensando bem, não muito mais do que a proibição do ovo com gema mole.

Tomás Chiaverini é autor do romance Avesso (Global), e dos livros reportagem Cama de Cimento e Festa Infinita (ambos pela Ediouro). Mantém a coluna mensal Abelha na Orelha.

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