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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Sevilhana

Fui à Espanha buscar o meu chapéu azul e branco, da cor daquele céu. E nenhum como o de Sevilha, que é como um excesso – e olha que eu sou de Brasília.

Sevilha é uma orgia para os sentidos, sobretudo para a visão. Pelo labirinto de ruelas árabes com suas lojas, restaurantes e cafés, quanto mais se anda, mais pátios e praças inesperadas surgem, como num jogo no qual se entra desavisada. E a cada três passos, uma construção que te seduz, te chama, te impede de continuar andando e fingindo que não viu.

Antes dos quarenta, eu achava que a pior ameaça era a cegueira. Como viver no escuro, como perder esta relação carnal com o mundo? Talvez por isso “Janela da alma” tenha tido sobre mim um impacto avassalador, cujo efeito durou muitos dias, e me obriga a revê-lo de vez em quando. Ver é tudo, e não me venham com essa conversa mole de que o essencial é invisível. Pode até ser, mas o visível e palpável nos molda e delimita. Mas também encharca.

É o que constato, mais uma vez, no meio desta orgia. Tanta coisa pra ver em vinte e quatro horas, e tudo tão imperdível. Ser turistas nos torna rasos. Como as hordas de chineses e brasileiros que estão por todo lado aonde se chegue. Os chineses, já sabemos, estão conquistando o mundo, e nós vamos a reboque, gastando os reais extras que a crise econômica mundial colocou em nossas mãos proletárias.

De escória do mundo civilizado, viramos turistas em bandos, produzidos por atacado, loucos pra comprar. Os comerciantes já disfarçam o desprezo com que nos tratavam até outro dia.

Mas voltando ao papo da visão, acho que o medo de perdê-la vai diminuindo com o tempo, junto com outras urgências que vão se acalmando. Quem sabe, se e quando chegar aos noventa, eu fique como aquela velhinha.

Clemencia é o seu nome, mexicana, cabelo branquinho, liso e curto. Olhos baços, já quase não enxergam, e os filhos a levam ao melhor oftalmologista da capital. O doutor propõe uma cirurgia, ela hesita. Volta pra casa e nos conta da consulta, acrescentando que não tem nenhuma intenção de se operar. “Ya he visto mucho”, ela nos diz, e ponto final.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

10 comentários:

Anônimo disse...

Puxa, Junia... que lindo!
Abraço!
Carol

Anônimo disse...

Sevilha,cidade linda, comentada pela Júnia, se torna maravilhosa. Trabalho superlativo.Mais uma vez, parabéns.
Mummy Dircim

Anônimo disse...

Reli Sevilhanas. Júnia, você tem uma visão muito ampla de mundo, vida, cores, ver, sentir, perceber, olhar,participar ...
É difícil encontrar tanta sensibilidade ....
Mummy Dircim novamente

Fernanda Pompeu disse...

Bom demais! Este texto parece o anel de ouro, prata e brilhante que ganhei da minha mãe. Pequeno e tão lindo!

lucci disse...

Saudades de Sevilha! Compartilho da mesma paixão por esta cidade. É como o nosso Nordeste: A parte mais pobre da Espanha e, no entanto, mais quente, mais colorida, mais apaixonada, mais flamenca, mais árabe...a mi, me encanta!!!Um viva ao olhar! Um olhar com os olhos mas, sobretudo, com a alma!!!

Carla Perdiz disse...

Adorei! Que vontade de conhecer Sevilha! E também de continuar vendo muito! Com todos os olhos e sentidos! :)

Anônimo disse...

No ano passado fiz uma cirurgia delicada nos olhos e passei nove meses em recuperação. Neste período tive a oportunidade de conhecer Sevilha. Refiz todos os meus caminhos de lá no seu texto e sim, também sou de Brasília e concordo que o céu de Sevilha é um exagero tendendo ao violeta. Sevilha faz bem para a alma e para os olhos. Depois que voltei de lá, já estou quase enxergando em HD. Márcia Ester

coresentrenos disse...

Janela da Alma, me encanta até hoje. Sempre faço citação sobre ele.É impactante e lindo.
"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara." Saramago.
bjos, bjos

Gisele disse...

Cigana que sou, dizem alguns atabaques por aí, não neguei a raça e as duas visitas que fiz à Sevilha me marcaram. Me lembro do bairro de Triana, com suas ruas estreitas e casas coloridas, e as árvores pesadas de laranjas, ou seriam tangerinas, ao alcance das mãos. Comer pescadito frito à noite nos tablados de flamenco, com todo mundo batendo palmas e pés. A torre dourada às margens do Guadalquivir e aquele conjunto arquitetônico herdado dos mouros no bairro antigo, onde passa o bonde elétrico. Ainda tem aquela praça, como se chama? Dentro de um museu, uma praça que ao redor tem painéis de azulejos retratando todas as províncias espanholas.
É uma orgia de sentidos, verdade. Um lugar sensacional.

Anônimo disse...

Junia P, comungo da sua sensação de que enxergar é essencial. Quero ver sempre muito. A questão é poder escolher o que se vê. Amei o texto!
Beijocas,
Myriam

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