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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Coisas que eu sei

Não foi maciota ter sido adolescente sob o regime militar. Eu tinha 13 anos quando baixaram o AI-5, em dezembro de 1968. Lembrando para os mais jovens: o AI-5 enterrou o que restava das liberdades democráticas – já feridas de morte com o Golpe de 1964.

Ficava proibida qualquer manifestação política contrária à ditadura. A manifestação podia ser uma peça de teatro, uma canção, um livro, uma charge, um artigo de jornal. Podia ser um discurso proferido em uma esquina, ou numa mesa de bar.

A ordem era: cala a boca, se não te prendo, te torturo, te mato, te desapareço. Imaginem, então, descobrir o mundo público em meio ao estado de mordaça e terror. Imaginem o desconforto dos adolescentes tão ávidos de se expressar. Tão a fim de afirmar: Eu existo!

Mas não pensem que o autoritarismo vinha apenas dos militares, dos policiais e dos políticos cúmplices. Ele se tornou viral. Encorajou porteiros, síndicos, seguranças. Qualquer um desses estava no direito de exigir documentos e barrar passagens.

O autoritarismo – revólver dos medíocres – passou para as mãos de alguns professores, inspetores, diretores escolares. Talvez seja impossível para o adolescente de 2012 compreender o que era frequentar uma escola pública sob o regime militar.

Desastre! Perguntar, provocar, pensar fora do quadrado estava definitivamente fora de questão. Éramos encarados como seres sem vontade ou luz próprias. Silêncio! Silêncio! era o grito que mais ouvíamos.

Fora dos muros da escola, convivíamos com o ufanismo oficial. Milagre econômico, operário padrão, prá frente brasil, melhor futebol do mundo, tv globo, miss brasil, integração nacional, transamazônica, ponte Rio-Niterói. Enfim, ame-o ou deixe-o.

Nós, adolescentes de então, novos velhos de hoje, herdamos traços importantes da cultura do cala a boca, quem manda aqui sou eu. Porque pensem: se racismo, sexismo, homofobia, intolerância se aprendem, o autoritarismo também.

O que pergunto para os mais jovens, para os meus amigos, para os meus adversários e, fundamentalmente, para mim mesma é: como se desaprende?

fernanda pompeu, webcronista, colunista do Nota de Rodapé, escreve às quintas a coluna Observatório da Esquina.

5 comentários:

Caio Pompeu disse...

Acho que desaprendi a usar só camiseta branca. Mas, por hora, é só o que me ocorre... Queria desaprender mais, mas tem coisa q fica colado na gente feito super-bonder... Bjo!

CLinck disse...

Vícios e maus hábitos que habitam mentes e corações são ladeira abaixo. É a gravidade que se encarrega... é para baixo, é para o fundo. Um poço sem fundo para onde morrem as virtudes e as esperanças de surgirem pessoas melhores,uma sociedade melhor e, enfim, uma civilização decente. Coisa de baixa energia e más vibrações surgem da preguiça, da covardia e da incompetência. E vamos ficar de olho aí nas muito cinicamente toleradas ditaduras de hoje: Putin na Rússia, Assad na Síria, Emirados Árabes, o regime ditatorial chinês, governos loteando a máquina pública entre partidos e coronéis e, principalmente, das corporações transnacionais financeiras oligopolizando a riqueza e submetendo países inteiros a seus interesses. Nem precisa dizer mais nada. Tá tudo aí... Algo que não sei? Se um dia muda... se um dia melhora!

Fernando Evangelista disse...

Fernanda,
Ótimo texto, como sempre. O autoritarismo, “revólver dos medíocres” ( excelente!), está por tudo, em tudo. Dia destes, um jovem engravatado, com pinta de advogado ou pastor, estacionou o carro em lugar proibido. O guarda pediu, educadamente, para que ele retirasse o carro e a resposta foi quase um chavão:“você sabe com quem você está falando?” e tirou do bolso uma carteira que não sei se era de senador, capitão, coronel, juiz... e repetiu a frase: “ você sabe com quem você está falando?” O guarda pediu desculpas e o carro continuo estacionado no lugar proibido. Isso são as coisas explícitas, mas ainda mais grave é este autoritarismo sutil assinalado no teu texto. Parabéns, mais uma vez. beijo

Caco Bressane disse...

Fernanda,
Que texto maravilhoso!
O impacto de um regime tão autoritário é muito maior do que a gente imagina, muito disso está no ar ainda hoje. Não sei como desaprende, acho que não desaprende. Ficou, para minha geração (meu pai também tinha 13 anos no decreto do AI-5)uma grande lição, a a lição de como NÃO se deve fazer..

Anônimo disse...

Não se desaprende. Antes, se usa. E como usar marca o jeitão que cada um recebeu o aprendizado. Hoje, com filhos e neta, continuo achando que a democracia é uma idéia dificilima de se construir. Respeitar o outro, ouvir o outro, tratar o outro como sujeito e não como coisa, e até mesmo dialogar com o outro, sem baixar a cabeça nem minha nem a do outro - são tarefas muito dificeis. Adorei seu texto. O AI5 marcou nosso tempo e trouxe respostas ruins e respostas boas - aquelas das quais nos orgulhamos de relembrar. "Prepare o seu coração prás coisas que eu vou contar ...". Sempre abro seus textos com essa musica em mente. Grande beijo jsavio

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