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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

“Não se admite”: policial não é executor

Em outubro de 2011, o NR contou a história de Márcio Lourenço, morto pela Guarda Municipal de Atibaia em mais um caso de violência policial. A prefeitura da cidade, à época, havia sido condenada por violação de direitos humanos. No texto de hoje, quatro anos após a execução do rapaz, a administração municipal sofre nova derrota na Justiça, numa decisão salutar da desembargadora/relatora do Tribunal de Justiça de São Paulo, Luciana Bresciani.

Márcio, 22 anos, 3 anos antes de sua execução
Naquela manhã de domingo, no último 19 de agosto, Olinda Rodrigues Lourenço lembra com tristeza os quatro anos da morte de Márcio Rodrigues Lourenço, seu filho. Diarista, moradora de Atibaia, no interior de São Paulo, a 60 quilômetros da capital, ela pode, contudo, comemorar decisão judicial que fará alguma justiça numa situação que foi ignorada por prefeitura, Ministério Público e mídia local. Márcio morreu aos 25 anos, na tarde de 19 de agosto de 2008, executado por tiros da Guarda Municipal (GM) subordinada à Secretaria de Segurança Pública – relembre a matéria deste Nota de Rodapé sobre o episódio.

Confirmando decisões da Comarca de Atibaia e do próprio Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), a desembargadora/relatora do TJ-SP, Luciana Bresciani, impôs nova derrota à prefeitura da cidade no dia 3 de agosto deste ano, quando foi publicada sentença que negou dois recursos da administração, um extraordinário e outro especial, impedindo-os, com sua decisão, de recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) em Brasília.

Para tanto, Luciana salienta a falta de fundamento na defesa dos guardas e destaca o incontestável excesso de força dos agentes. “Inconteste o nexo causal entre a ação dos guardas municipais e a morte do filho da autora. O excesso é manifesto, quer considerando a atuação da Guarda Municipal, ultrapassando os limites da prevenção de crimes, quer porque, de qualquer forma, não se admite transformar policial em executor”, ressalta.

Além disso, a relatora aponta provas definitivas de que Márcio não reagiu à agressão. Apesar das testemunhas da ré terem afirmado que a vítima estava armada, não há nos autos do processo qualquer prova nesse sentido. A arma a que fazem referência os guardas nem sequer foi encontrada. “Se existente, poderia ter sido utilizada pela vítima, o que também não restou claro nos autos”, indica Luciana. Outro aspecto é que não houve qualquer menção ao porte de armas no inquérito policial e nenhum trabalho pericial foi elaborado para verificar a presença de resíduos de pólvora nas mãos da vítima, cujo resultado evidenciaria presença ou ausência de arma nas mãos do rapaz.

Todas as testemunhas – com exceção dos guardas municipais e funcionários da Secretaria de Segurança Pública – declararam que o rapaz estava correndo, o que contraria o discurso do município.

Também um laudo mostra que a trajetória do projétil dá a ideia de que a vítima não estava em posição de confronto, já que a bala atingiu Márcio quando estava de lado para os guardas e não de frente.

No final da sentença, Luciana Bresciani enfatiza a responsabilidade da prefeitura e confirma a indenização por dano moral à mãe da vítima, no valor de cem salários mínimos mais correção, juros legais desde a citação e custas judiciais. “Nada justifica a conduta dos guardas em face da fuga do filho da autora. O nexo causal entre o dano e o fato está devidamente evidenciado, razão pela qual a reparação do dano moral é devida”.

Em 2011, o Tribunal de Justiça já havia discordado da versão dos guardas municipais, que alegaram legítima defesa para efetuar os disparos, e manteve sentença da Comarca de Atibaia, de 2010, contra o Poder Executivo, por violação de direitos humanos. A decisão confirmava a execução e apontava que o boletim de ocorrência foi forjado, pois o processo judicial desmente que o rapaz teria sido morto após trocar tiros com os agentes.

A luta segue

Olinda conta o motivo de pedir indenização. “O Márcio tinha defeitos. Não digo que não furtou as torneiras, mas ele nunca andou armado, não era o criminoso que disseram”, desabafa. “Estava esperando essa decisão. Finalmente saiu”, completa. Com a decisão na esfera cível, é possível, com atraso de quatro anos, a instauração de ação administrativa regressiva para que a Prefeitura apure internamente a responsabilidade dos agentes e exija deles o pagamento da indenização.

Cabe ao prefeito Dr. Denig (PV) a atitude de cobrar os autores do crime e tirar o peso dos cofres públicos. Em 2008, quando da ocorrência da morte de Márcio, o prefeito era o atual deputado estadual Beto Trícoli, também do PV. Na gestão dele, a apuração não progrediu.

Além disso, a reabertura do processo criminal foi solicitada pela organização não governamental Centro Nacional de Denúncias (CND-BR), ao Ministério Público, que arquivou o inquérito justificando não haver provas que constatassem infração por parte da Guarda Municipal. A nova decisão do TJ-SP pode fortalecer o pedido da entidade e forçar o MP a tomar providências.

Marcos Rodrigues Lourenço, irmão de Márcio, avalia que a sentença, independentemente do valor da indenização, motiva a continuação da luta para punir os responsáveis. “Nós, da família, nem estamos preocupados com o valor. Essa decisão nos fortalece para pedir justiça, para que os responsáveis tenham a culpa investigada pela prefeitura e para que respondam criminalmente. Tenho os jornais da época pintando meu irmão como um bandido perigoso, que atirava em guardas, matérias que expuseram a imagem dele sem a nossa autorização. O Márcio não era nada do que disseram. Tinha uma dependência, estava falando em se internar, mas não deu tempo”, afirma.

Moriti Neto, jornalista, mantém a coluna mensal Escarafunchar no Nota de Rodapé.

2 comentários:

Cristiane Lustosa disse...

É triste ver que esta família teve de esperar mais de 4 anos por esta sentença, e mais triste ainda o que esta mãe teve de enfrentar, não bastasse ter seu filho executado, ainda ver notícias nos jornais colocando-o no papel de grande criminoso que atirou nos guardas.
Concordo com a relatora Luciana Bresciani,ao dizer que, mesmo estando em fuga,nada justifica a conduta dos guardas e acredito que, quem a defende contribui para que outros casos venham a ocorrer (como já ocorrem) e acabar da mesma forma,já que na condição de policiais há sempre o escudo da legítima defesa para protegê-los da punição, independente das condições reais em que o fato tenha ocorrido.
Parabéns pela matéria. É importante que em meio à manchetes de jornais que não se dão ao 'trabalho' de apurar os fatos e o mostram da maneira que lhe convém, existam outros que primam pela seriedade, verdade e respeito aos envolvidos.



Moriti disse...

Obrigado, Cris. É realmente triste as forças de segurança usarem teses de "resistência", muito comuns, para executar, o que geralmente ocorre quando as vítimas são pobres e negras.

Sobre a apuração, não que seja geral, mas que tem muita gente que não sai da redação e só se arvora em versões oficiais, isso tem, infelizmente.

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