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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Pororoca

Começou assim, como quem não quer nada. Num domingo de sol e céu impecáveis, eu caminhava sozinha por Nova York, em direção a um desses museus da hora, quando percebi que me escorriam discretas lágrimas pelo rosto. Não entendi muito bem, porque não achei nenhum motivo pra elas. Atribuí ao frio que ignorava os agasalhos e não me deixava esquecer que moro num país tropical.

Estava lá para um grande evento, que era a culminância de um esforço meu de muitos anos. Fui reconhecida e paparicada, mas não conseguia achar muita graça em nada. Inclusive, bateu um desespero de voltar pra minha casa dois dias antes do planejado, e voltei mesmo.

Na semana seguinte, fui a um concerto vinculado a uma campanha cívica, compromisso de trabalho. Não sei dizer o que aconteceu ali, nem qual era o programa musical, só me lembro que havia um ótimo pianista português. Isso porque as únicas coisas que eu conseguia perceber bem eram um aperto no peito e insistentes lágrimas.

Dali pra frente, eu, que valorizo cada uma das minhas lágrimas, porque sei quanto me custam, entrei numa de chorar por qualquer coisa. Não estava me reconhecendo. Para completar, era um período muito difícil no trabalho, com problemas por todo lado, conflitos, demandas intermináveis, muita pressão, e eu comecei a me sentir muito cansada de tudo aquilo. Uns dias depois, além do cansaço, eu tinha vontade de sumir.

Dei pra achar que estava no lugar errado, que não tinha competência pra tanta responsabilidade, que não dava conta de tanta demanda, e que tinha que ter uma conversa séria com minha chefe, e que ela deveria começar a buscar outra pessoa pra assumir o meu lugar já, agora, imediatamente.

Aí veio a pororoca. Com a angústia em franca escala ascendente, comecei a ter dificuldade pra respirar. Isto num fim de semana absolutamente corriqueiro, em casa, sem nenhuma demanda especial. Incapaz de conter o choro, eu vagava pela casa como um zumbi. No domingo à noite, sentia que ia morrer, com o coração aos pulos e falta de ar – um horror.

Salvou-me minha santa ginecologista de muitos anos, a quem telefonei em desespero, acusando a oscilação hormonal da menopausa. O vilão era outro: um remédio pra dormir que havia sido receitado por um supergeriatra, com quem eu estava começando a tratar preventivamente o envelhecimento, e que decidira tentar me aliviar a persistente insônia. Diagnóstico: depressão química, com fortes sintomas de síndrome de pânico.

Tudo isso pra dizer que conheci a depressão por dentro. Vivi quase dois meses na sombra, no escuro. Queria sumir, morrer, dormir e não acordar. Achava que minhas falhas e dificuldades eram terríveis e insuperáveis, não adiantava insistir, viver não valia a pena. Em cada célula do meu corpo. Depois passou, mas sei de muita gente que convive com ela durante anos e anos, numa luta que conta com a minha maior admiração e solidariedade.

“Ser feliz” é uma exigência do nosso tempo, seja lá o que for essa tal felicidade. Muitas vezes, a vida pode não ser nada como a gente queria, mesmo porque quase sempre queremos coisas que, se pararmos pra pensar, são muito estranhas, inventadas pra não dar certo. Como ter alguém, uma única pessoa, que nos satisfaça todas as necessidades afetivas, sexuais e emocionais, pra que a gente possa viver sem dor e sem esforço. Não consigo pensar em nada mais irrealista e egocêntrico.

Mas ela é boa, como quando a gente descasca uma mexerica e aquele cheiro invade tudo, ou lê um livro que não consegue largar, ou vê “Tudo sobre minha mãe”.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

9 comentários:

Carlos Augusto Medeiros disse...

Seu lado Dostoievski veio acompanhado de, também, um texto muito atual e sensível. No primeiro caso, fez-me sentir toda a dor, como se lá estivesse a caminhar ou a expurgar os males: faltou ar!; no segundo, remeteu-me a associações diuturnas. Curioso como as pessoas com esses sentimentos estão tão próximas a nós e, por vezes, não possuímos as ferramentas para diagnosticá-las, acolhê-las, ajudá-las. Que pena que não li esse texto antes: teria poupado muito emprego.
Abraços,
Carlos

Anônimo disse...

Júnia lindo texto, muito bom começar o feriado assim! Adoro o jeito q vc escreve parece papo entre amigas, muito bom! Bjs Carla

Anônimo disse...

JUNIA, as montanhas tambem choram,gemem e, no apice da depressao,expelem lavas de fogo. Justo,portanto, que sua conhecida fortaleza emocional tenha entrado em panico em determinado momento. O importante 'e que voce conseguiu vencer a tormenta e cumpriu seu trabalho com a mais admirada competencia e responsabilidade. Os percalcos existem para ser vencidos pelos fortes. Parabens da Mummy Dircim

Mara Régia disse...

Haja ouvidos e coração pra aguentar o estrondo dessa Pororoca! Nem no Amazonas consegui navegar águas tão profundas!!!! Obrigada.
Bjs amazônicos
Mara Régia

Fernanda Pompeu disse...

Texto nota dez, minha senhora.

Anônimo disse...

Jesus amado, que timing. Peguei um vôo de urgência para vir ao Rio no meio do feriado porque minha mãe, aos 73 anos, teve uma crise nervosa, um surto, sei lá como se chama isso. Ela não levanta da cama, chora o tempo todo e fica passando álcool nas coisas, desinfetando tudo, com medo de bactérias inexistentes. Foi diagnosticada com TOC, fobia e depressão. É incrível como a mente pode nos dominar por completo. É assustador e ao mesmo tempo te dá uma mega sensação de impotência. Agora vou ter que pressionar para ela seguir o tratamento, segunda vou levá-la ao psiquiatra e vou revezar os cuidados com o meu irmão. E torcer, muito, para que o tratamento seja bem sucedido...
Obrigada pela crônica. beijo, Gisele

Anônimo disse...

Tomara que ela fique bem, Gisele. Grande abraço. Júnia

Nômades pelo mundo. Marina e Edison. disse...

Não sei quanto a mexerica e aquele cheiro invandindo tudo! Risos, risadas e mais gargalhadas! Mas, no resto, concordo plenamente e, acredito eu, não há que não tenha passado por uma pororoca dessas! Bjs.

Monica Galvão disse...

Esses dias estive em Pirenópolis. Fui a uma linda cachoeira, nadei em poço de rio e na volta, já no final da trilha, meus olhos se estalaram frente a uma visão maravilhosa: um pé de jabuticaba absolutamente carregado de frutos maduros!Ali, ao meu alcance! Provavelmente,a jabuticabeira tinha sorvido a água do pé d'água Júnia, aquele, do Setembrino.
Posso sentir o cheiro da sua mexerica, enquanto como jabuticabas depois da chuva!!

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