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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Sangria

Em frente à minha casa, havia um açougue feio e infestado de moscas, como todos os outros, naqueles já distantes anos sessenta. Tempo em que criança brincava na rua, e a gente via o caminhão entregar os quartos de boi, que ficavam pendurados, em fila, em ganchos colocados contra a parede, atrás do balcão.

O açougueiro, então, colocava sobre a tosca mesa feita de um tronco de árvore uma daquelas enormes peças de carne, ossos, nervos e gordura, de onde ainda escorria um líquido sanguinolento, e a destrinchava, cortava, limpava e separava em pedaços menores, que depois eram vendidos à freguesia do bairro, embrulhadas em jornal.

Décadas mais tarde, empurrada pela impossibilidade de suportar e conter a dor, fui fazer psicanálise.

Nos primeiros meses, e por uns dois anos, o quarto de boi sobre a mesa do açougue era como eu me sentia, enquanto jorrava de mim uma sangria que me parecia eterna. Carne viva. Mesmo duvidando todos os dias de que algum conforto seria possível, insisti, nem sei bem porque. Talvez por ter tido a sorte de ser acolhida por uns braços cálidos e incondicionais.

Entra ano, sai ano, um dia me dei conta de que uma tampa havia sido colocada. Alguns filetes ainda escorriam, obstinados, mas aí eu mesma tapei as frestas com os dedos. E dá-lhe conversa.

Num outro dia, não muito tempo depois, comecei a sentir algo novo, uma largueza, uma soltura, como se o espartilho de arame, igual ao daquelas pobres princesas condenadas tacitamente, tivesse sido removido e eu pudesse respirar sem esforço.

A fonte do sangue que verti durante tanto tempo, não sei que fim levou. Enquanto faço os curativos, observo que a carne vai-se fechando e as feridas vão virando cicatrizes, que talvez não desapareçam, mas serão apenas isto. Marcas de uma viagem, a mais difícil de todas, que não permite evitar escalas nem ligar o piloto automático, mas durante a qual terei contado com a melhor de todas as companhias.

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR.

6 comentários:

Anônimo disse...

JUNIA QUERIDA, nunca imaginei que você tivesse "um tronco de madeira" (para usar seu linguajar) obstruindo as frestas de ventilaçao de sua vida.Sinto-me confortada ao entender que, agora, você está podendo respirar,como costumo dizer, pelas frestas recém-fechadas.Não entendi bem a comparação.
Amor e carinho da Mummy Dircim

Anônimo disse...

Pois deixe a luz do sol entrar, abra todas as frestas do coração e siga seu caminho iluminado pela alegria do viver.
Mummy

Shirley disse...

Junia e Mummy Dircim, acho bonito o jeito que vcs parecem ter encontrado para melhor se conhecerem por esses escritos. Acho interessante os efeitos que as palavras de Junia têm sobre Mummy Dircim. E sempre imagino que isso não venha sem uma ponta de surpresa e dor. Espero que as portas e janelas entre ambas se abram na medida do possível (é bom manter algumas janelas bem fechadinhas pras outras pessoas, faz parte); e que as dores de viver e as sangrias nossas de cada dia sejam aplacadas pelo carinho e proteção que cada pessoa pode nos proporcionar. Um beijo pras duas.
Shirley

Anônimo disse...

Valeu, Shirley, nossa atenta e delicada observadora. Júnia

Anônimo disse...

Júnia Puglia! Fico a imaginar que a mesa cirúrgica desta semana abriu novas feridas (mesmo que laparoscópicas) e ressuscitou o sentimento hemorrágico das antigas...de curativo em curativo elas vão tecendo o novo, com malhas mais vigorosas, novos tons, novas texturas! E assim, refazenda, refazendo! Cuide-se. Grande beijo, Olga Ronchi

Monica Galvão disse...

A fonte do sangue se transformou na fonte da transformação, através da força do auto-conhecimento! Como podem ser curadores os encontros amorosos, sejam eles de que dimensões forem. Texto corajoso, Júnia! Daqueles que saem de quem ousa fazer a viagem. Bjs
Monica

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