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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Tambor de todos os ritmos*

Dos zero aos cinco anos, vivi uma vidinha bem irresponsável. Em casa, cercada da família e ocupada em crescer, brincar e explorar o mundo ao alcance dos sentidos. Tudo mudou quando entrei no jardim de infância. Aí começaram os compromissos, obrigações e expectativas formais a respeito da minha capacidade, comportamento e atitude, todas voltadas principalmente para o desempenho escolar. Porém, a escola e eu nunca falamos a mesma língua, então esta etapa terminou penosamente aos dezoito anos, quando impus à família a minha decisão de parar de estudar.

Arrumei um emprego de auxiliar numa biblioteca universitária, que foi o ponto de partida de quase quarenta anos de ralação. O fim foi há poucos meses, quando solicitei uma aposentadoria antecipada, mesmo sabendo que teria uma queda significativa na renda mensal.
Não sei quanto vai durar esse desinteresse por compromissos e obrigações, mas desconfio que muito mais do que eu mesma esperava.
Como a grande maioria dos seres humanos, ralei muito e gastei no trabalho grande parte do meu tempo e da minha energia, saúde e inteligência. Suportei pressões, contrariedades, injustiças e cobranças que frequentemente considerei exageradas, num mundo em que o sacrifício pessoal é exigido, mas quase sempre desconsiderado, e os sonhos despretensiosos são sumariamente desdenhados. Tive muita raiva de chefe, de colegas “malas”, de gente dissimulada e folgada, fui preterida. Também, tive oportunidades, fui reconhecida e valorizada. No trabalho, e por causa dele, conheci pessoas da melhor qualidade, por quem tenho grande admiração e respeito, e que se tornaram parte de mim. Tudo isso ajudou a moldar o que sou hoje, para mal e para bem.

Por mais que eu tivesse desejado parar de trabalhar, quando aconteceu, foi um choque. Afinal, a vida de obrigações e cobranças, de ter que produzir e ser útil, era a única que eu conhecia desde os cinco anos – e sei que, para as crianças de hoje, começa muito mais cedo – mas, então, o sonho de ter todas as horas do dia para eu decidir o que fazer com elas se realizou. Também o de viajar as minhas viagens, sem agenda e sem pressa, podendo andar na rua o dia inteiro e sentir o lugar onde estou.

Leio, navego na internet, resolvo pequenos problemas domésticos, cozinho, vou ao cinema e às aulas de Pilates no meio da tarde, encontro amigos para um bate-papo relaxado, escrevo e-mails e textos para esta coluna, viajo de vez em quando e, principalmente, faço tudo em câmera lenta.

Não sei quanto vai durar esse desinteresse por compromissos e obrigações, mas desconfio que muito mais do que eu mesma esperava. E o que vier, daqui pra frente, será cuidadosamente escolhido, de forma a não ser um retorno à vida de antes, que considero encerrada.

Enquanto escrevo, olho as árvores lá fora, ouço as cigarras, que chegaram para anunciar o fim da estiagem, e me dá uma vontade enorme de que a vida seja mais leve, simples e prazerosa para cada pessoa que passa zunindo nos carros que descem a avenida que vejo daqui; aliás, pra todo mundo. É, sonhar e desejar não pagam imposto.

*Verso da canção “Oração ao tempo”, de Caetano Velloso

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR. 

3 comentários:

Anônimo disse...

Com todo seu dinamismo não creio que fique muito tempo parada.Alias, nunca fiz segredo de que trabalhar é uma bênção.Pelo menos para mim.Mas você sabe colocar no papel, com elegância e firmeza,suas lutas,decepções e vitórias na vida profissional.Na vida real é de se esperar que,daqui a pouco, cansada do descanso, esteja de novo no "batente" de cada dia.
Bjs da Mummy Dircim

Anônimo disse...

Trabalhando no feriado e tendo um call daqui a 5 minutos com HQ em Nova Iorque, parei para ler a tua coluna e oxigenar um pouco o cérebro, o coração e os pulmões. É bem verdade que a metade do Lexotan ingerido há meia hora também ajudou, mas, de verdade, tuas crônicas me fazem pausar e respirar. Obrigada pelo ar fresco. Beijos, Gisele

Shirley disse...

adorei o slow food way of life dessa nova fase de sua vida. que tenha vida longa e lenta... beijos enormes e foi um prazer enorme ser uma das malas da sua vida profissional... :-)

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