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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Libelu

Sou filha de um comunista de carteirinha. Passei a infância e adolescência aprendendo a admirar a União Soviética e Cuba. Antes de dar meu primeiro beijo de língua, eu já sabia quem tinham sido Vladimir Lenin e Alexandra Kollontai.

Meu pai acreditava que uma vez derrubada a ditadura de 1964 e instaurada a democracia, o PCB – Partido Comunista Brasileiro- retornaria à legalidade. Quando isso ocorresse, o Partidão conquistaria o coração do povo.

Pois aconteceu que, no final da década de 1970, eu entrei na Escola de Comunicações e Artes, da USP. Logo no primeiro dia, na recepção aos calouros, fui conquistada pelos veteranos do Centro Acadêmico. Todos da Liberdade e Luta, mais tarde chamados de os libelus.

Nessa época o movimento estudantil punha as manguinhas de fora, deixando as salas de aula para se arriscar em atos públicos e passeadas pela ruas de Sampa. Foi a época de ouro das tendências estudantis. Havia a Liberdade e Luta, a Refazendo, a Travessia, a Caminhando, entre outras.

Como entrei na ECA, me tornei libelu. Hoje tenho certeza que se tivesse entrado na História e Geografia teria me tornado Refazendo. Era assim que funcionava para a maioria. Você não escolhia a tendência. Os centros acadêmicos chegavam em você.

Vamos ao conflito: a Liberdade e Luta se denominava trotskista e minha tradição familiar era stalinista. Para quem não lembra: o camarada Trotsky e o camarada Stalin se odiavam de morte. Sendo o primeiro considerado um mártir e este último um feroz ditador.

De repente aquela garotada linda, criativa, leve e solta punha o dedo na cara de comunistas como o meu pai. O dedo dizia: "Vocês são os traidores da causa operária-camponesa. Enquanto nós somos os legítimos defensores dos pobres e oprimidos."

Apesar do choque fiquei ao lado dos meus novos amigos, é claro. Verdade que os militantes da Libilu nada tinham de operários, ou de camponeses. A maior parte morava em casas confortáveis e vivia de mesadas bem burguesas.

Eles tinham uma vida muito mais folgada do que a minha. Pois o meu pai havia sido demitido, pelo Ato Institucional número 1, do bom emprego no Banco do Brasil. Justamente por ser comunista. Foi aí que a família teve que trocar a deliciosa manteiga pela insípida margarina.

Contradições, né? Mas adorei ter sido uma libelu. Foi um momento brilhante da minha vida. Conheci pessoas que se tornaram máximas referências afetivas. Em suma, fiz grandes amigas e amigos. É isso que interessa no começo, meio e fim de qualquer história.

Água que rola. Meu pai deixou o PCB e abraçou o PT. Eu deixei a ECA e esqueci a Liberdade e Luta. Peguei o barquinho da não militância. Encontrei minha turma: a tribo das palavras. Pela primeira vez na vida fiz uma eleição sincera.

Não foram as palavras que me escolheram. Fui eu quem elegi essa forma de estar no mundo. Escrevendo. Tirando a roupa da memória para exibir sua nudez despudorada e útil.

fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve a coluna Observatório da Esquina, às quintas. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto.

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