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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Maré de dentro

Fábio Caffé, AF Rodrigues, Elisangela Leite e Ratão Diniz. (Foto de Edmilson de Lima)
A cidade do Rio de Janeiro tem uma população de mais de 6 milhões de habitantes. 22% dessas pessoas moram em 700 favelas que apresentam baixos Indíces de Desenvolvimento Humano (IDH). Há quem diga que, na cidade maravilhosa, vive-se sob o império da violência e do crime, pois os números se assemelham aos países em estado de guerra baseado em dados estatísticos de 12 mortes por dia no estado

Sob esse estigma, reforçados dia e noite nos noticiários, os moradores das favelas cariocas trabalham, estudam, festejam, brincam, amam. Mesmo quando a mídia publica uma notícia positiva sobre a favela ou algum morador, a exaltação normalmente reforça os conceitos pré-concebidos sobre quem vive no território geográfico-social da periferia: “ele não era bandido, mas um trabalhador”, surpreende-se o repórter ao falar sobre a chacina que aconteceu na Baixada Fluminense em 2011.

O lamento do jornalista publicado no Observatório de Favelas sobre a morte de um inocente não destaca a violação dos direitos dos moradores, a importância em reduzir a violência policial ou mesmo sugere a aplicação de políticas públicas em prol da valorização da vida. A mídia, por sua vez, sempre espanta-se ao constatar que um morador não tinha passagem pela polícia. Por quê? Do ponto de vista da grande mídia a culpa antecede o crime nas favelas brasileiras.

Na contramão das manchetes diárias o fotógrafo documental João Roberto Ripper afirma que “99% da população das favelas nada tem a ver com o tráfico”. Ele é um dos idealizadores do projeto que em 2013 irá comemorar nove anos de existência: a Escola de Fotógrafos Populares.

Fundada em 2004 e aliada ao Observatório de Favelas, a Escola já formou mais de 200 fotógrafos. Os alunos, que cursam nove meses de disciplinas de comunicação e fotografia, são prioritariamente moradores das comunidades que compõem o Complexo da Maré.

Empunhando câmeras fotográficas, eles clicam uma favela rica em belezas. Se posicionam ao lado dos moradores e mostram o lugar sob um olhar cúmplice. São imagens de afeto e carinho, numa constante descoberta sobre a comunidade em que vivem. Estas fotografias resignificam a favela e renovam o repertório de imagens que se tem sobre ela, retirando assim, nossos olhares da pobreza da informação única.

Preocupados em escoar essa produção fotográfica e continuar acompanhando os ex-alunos da Escola, criou-se o banco de imagens e agência-escola Imagens do Povo. Nesta plataforma online é possível comprar fotos e serviços  composto por seis mil imagens e mais de trinta profissionais de vasto currículo, com exposições e prêmios no exterior, o grupo publicou o primeiro livro neste ano, disponível gratuitamente para download na internet.

O bem-querer de João
Além de mestre e um dos fundadores da Escola de Fotógrafos Populares, João Roberto Ripper é visto também como orquestrador do olhar sob a favela a partir de um conceito que cunhou com a prática: o bem-querer. Conhecido por aliar seu trabalho fotográfico à luta pelos direitos humanos, Ripper busca retratar a beleza das relações mesmo quando ela está submetida a grande injustiça social. Ele mostra a multiplicidade e a riqueza das histórias, saberes e fazeres, contribuindo para a difusão de uma imagem que valorize os grupos com os quais trabalha. Para ele, o fotógrafo deve ser o elo que alimenta a autoestima das comunidades. Professor do time de fotógrafos que compõe o Imagens do Povo, ele ensina a fugir dos esteriótipos e semear o bem.

De babá a fotógrafa:
'Assino Elisangela Leite'


A entrevistada por AF Rodrigues
Elisângela Leite, 37 anos, pernambucana, vive há 15 anos no Rio de Janeiro. Foi aluna de Ripper na turma que se formou em 2007. Elis, como é mais conhecida, foi babá e morava na casa dos patrões em Copacabana. "Assistia a favela pela televisão", diz. Somente aos 22 anos, quando foi viver com a tia na Nova Holanda, ela compreendeu que a Maré era mais complexa e interessante. Abaixo, um bate-papo sobre sua história. Em seguida, um slideshow de imagens de fotógrafos formados na escola, que aparecem reunidos na imagem de abertura desse texto.

Nota de Rodapé – Fale um pouco sobre a tua infância. 
Elisangela Leite Há pouco tempo lembrei que meu pai gostava muito de fotografar. Tem uns quatro ou cinco meses que eu lembrei dessa história: o meu pai vinha em casa de ano em ano, porque ele trabalhava fora em uma usina em Minas Gerais, e sempre fazia várias fotos da gente. O hobby dele era fotografar e escutar música. O meu pai não bebia e não jogava, então gostava dessas coisas. Eu fui buscando saber por que eu gosto de fotografia, porque até pouco tempo eu não gostava. Todas as fotos que eu via eram somente mais uma foto. Até que fiz o curso e comecei a ver o mundo com outros olhos.

NR – Estimulada pelo teu marido?
EL Sim, estimulada pelo A.F Rodrigues. Se não fosse ele, acho que não teria entrado pra Escola de Fotógrafos. Ele me deu o maior apoio.

NR – Tu tem imagens feitas pelo teu pai? 
EL Tinha muitas fotos, mas sabe como é criança, né? A gente rasgava tudo. Hoje em dia sinto a maior falta. Não tenho uma foto que meu pai tenha feito da gente.

Muita gente tem vergonha de dizer que mora na favela. Eu não, aonde for eu falo “eu moro na favela, Favela da Nova Holanda, Maré, conhece?” 
Laço - Elisangela Leite

NR – Me conta mais sobre a tua trajetória. 
EL Eu nasci na Paraíba, mas fui criada em Pernambuco, então me considero pernambucana. Vim para o Rio de Janeiro aos 15 anos e comecei trabalhando como babá. Dos 15 aos 23 anos fui babá. Depois, o garoto cresceu e fui trabalhar numa loteria, que era dos avós dele. Trabalhava na loteria e morava na casa deles. Então, o que eu conhecia de favela dessa época era o que a televisão mostrava. Mesmo tendo a minha tia que morava na Nova Holanda, eu morava em Copacabana. Eu não conhecia nada, só ia lá no final de semana. O que a tevê mostrava era o certo, o verdadeiro. Só mostra violência, né? Não mostra o outro lado. Com 22 anos fui morar com a minha tia, daí entendi o que realmente era a favela. Mas só me senti favelada depois, por meio da fotografia.

NR – Explica pra mim o que significa positivar este termo: favelado. 
EL Se sentir própria daquele espaço, como se você tivesse nascido ali. Se assumir. Muita gente tem vergonha de dizer que mora na favela. Eu não, aonde eu for eu falo “eu moro na favela, Favela da Nova Holanda, Maré, conhece?” Algumas pessoas ficam olhando, mas perguntam logo como é. Daí a gente fala que tem vários projetos, que tem aula de fotografia. A gente tenta mostrar a favela com outros olhos, os olhos além da grande mídia.

Os pescadores que eu fotografei ficam no Parque União, que é uma das dezesseis comunidades da Maré, embaixo da linha vermelha (...) Depois a gente saia pra pescar. Eu ficava ouvindo as histórias deles, nós conversávamos mais que fotografávamos.

NR – Fale mais sobre essa diferença entre o olhar da grande mídia e o olhar dos fotógrafos populares.
EL A grande mídia só entra na favela para mostrar a tragédia. Nós não, estamos ali mostrando o cotidiano, a alegria, a dança, as brincadeiras, as famílias. Ali as pessoas vivem normalmente, estudam, trabalham, fazem faculdade, intercâmbio e elas têm direito a tudo o que a dita cidade tem. A gente tenta mostrar este outro lado, o lado humano das pessoas. É isso que o Ripper nos ensinou. A gente tenta passar isso pra frente. Conversamos com os moradores para eles também se sentirem pertencentes do lugar. Porque muitos não se sentem, ficam com vergonha. Se você não se assumir, quem é que vai te assumir? Quem é que vai te dar valor?
O prêmio - Elisangela Leite

NR – Queria agora que tu me falasse do teu trabalho com os pescadores. Explicando também pra quem não é do Rio, onde eles ficam?
EL Eu comecei a pesquisar estes pescadores por intermédio da Jaqueline Félix, Adriano (AF Rodrigues) e Ratão (Diniz), que são o meus amigos mais próximos. A Jaque, na mesma época em que o Ratão e o Adriano faziam a Escola, trabalhou o tema dos pescadores. Quando eu tive que escolher o meu projeto na Escola fiquei pensando: "vou fotografar o que?" Criança, idoso... “vou voltar lá nos pescadores, eu gostei deles. Vou fotografar a história deles, não quero fotografar eles pescando, mas eles ali no dia a dia, no cotidiano dentro da colônia, costurando a rede, construíndo barcos, consertando barcos”, e esse foi o meu projeto. Os pescadores que eu fotografei ficam no Parque União, que é uma das dezesseis comunidades da Maré, embaixo da linha vermelha. Eu ia pra lá quase todos os dias e ficava batendo papo com eles, alguns já me conheciam, já tinham uma certa confiança e outros eu fui conquistando. Depois a gente saia pra pescar. Eu ficava ouvindo as histórias deles, nós conversávamos mais que fotografávamos. Eu quero voltar lá. Tá faltando tempo.

Natureza em tela - Elisangela Leite
NR – O que eu acho bacana no teu trabalho é que tu surpreende quem vê as fotos. Mostrando a relação da favela com as águas. 
EL O legal das minhas fotos é que você vê a Baía de Guanabara. E você sabe que ela é toda poluída. Mas nas minhas imagens você não vê essa poluição. Eu tentei mostrar o belo, como o Ripper sempre ensinou pra gente “fotografe o melhor, mostre o belo, tente fazer outra imagem, não faça o que todo mundo faz”. Cada vez que eu ia clicar eu pensava no que ele falava. Este era o meu objetivo e ainda é, mesmo hoje trabalhando para um jornal. Eu trabalho pra um jornal comunitário, dentro da Nova Holanda mesmo, o Maré de Notícias. Eu fotografo com esse pensamento. E se alguém não quer ser fotografado eu não insisto. Até ganhar a confiança dele.

NR – E qual é teu próximo projeto? 
EL Continuar com os pescadores. Ainda falta muita coisa, falta registrar outras colônias no entorno da Maré. A z10 de Ramos e a sub-colônia no Pinheiro ainda não fotografei. Eu quero fazer fotos dessas pessoas, quero mostrar a luta deles. Os pescadores estão lutando por essa tradição pesqueira que está morrendo. Os filhos não querem seguir, não dá dinheiro. E eles precisam trabalhar em outras coisas, uns são pedreiros, outros costuram redes pra ganhar um trocado e tentam pescar mais longe da baía, em alto mar. Isso quando conseguem um barco grande. O que eles mais fazem é passeio turístico nos finais de semana. É assim que eles sobrevivem. Eu gostaria muito de divulgar mais esse trabalho em prol deles.

 Imagens dos fotógrafos da Agência-Escola Imagens do Povo



Ana Mendes, gaúcha de nascimento, é fotógrafa e cineasta documental formada em Ciências Sociais. Mantém a coluna mensal Faço Foto e é curadora da coluna Coisa Íntima, autorretratos por fotógrafos profissionais e amadores publicada aos domingos neste espaço. 

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