.

.
30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Bem guardados

A memória é uma coisa louca: ora generosa, ora torturante, surpreendente, desalentadora, ou tudo ao mesmo tempo. Tem gente que defende a “exatidão” daquilo que lembra, como sendo a verdade, como se a memória fosse desinteressada e pudesse congelar o que aconteceu de forma objetiva. Nada mais enganoso. Cada pessoa que tenha estado presente numa determinada situação terá a sua própria memória do fato, pessoal e intransferível, moldada pela história e pelas características individuais.

Começo assim porque quero falar da infância, assunto que vem me rondando há algum tempo. Quem me companha aqui já leu várias menções à maternidade e aos filhos. Somos todos filhos, todos fomos fetos e bebês, e todos tivemos todas as idades anteriores à que temos hoje. No entanto, é muito comum que, uma vez encerrada determinada etapa da vida, guardemos dela uma memória idealizada. Deixando de lado a vida intrauterina e os três primeiros anos, dos quais poucos de nós se lembram de forma consciente, há uma espécie de consenso de que na infância se concentram as lembranças mais felizes.

Desconfio muito desse artifício. Aprender quem somos, o lugar onde estamos e como devemos nos comportar para obter aceitação e afeto – essenciais, mas nem sempre disponíveis – implicam um processo sumamente complexo e doloroso, que cada um de nós enfrenta como pode. Somos civilizados, enquadrados, moldados para caber naquilo que se espera de cada um, conforme a miríade de variáveis envolvidas na equação individual. Então, não me venham com esse papo de que tudo era lindo e perfeito. Não era, mas pode ter se tornado, para ficar mais confortável na memória.

Sim, é verdade que entre tudo o que eu não entendia e ninguém explicava, porque não há como explicar tudo, e não há como se desviar da dor dos filhos – como um dia desses a Eliane Brum escreveu lindamente em sua coluna semanal – vivi momentos mágicos quando criança. Entre eles, estão: olhar para as letras e entender como usá-las para formar palavras e expressar qualquer coisa – um deslumbramento; a banda de melancia devorada no quintal, com o suco escorrendo pelos braços e pingando dos cotovelos no chão – um prazer quase selvagem de tão intenso; acordar do sono da tarde banhada em suor, por causa do remédio para gripe, e encontrar minha mãe ao lado e uma jarra de Mirinda sobre a mesa. Estão lá, bem guardados, e de vez em quando os trago de volta. Você com certeza os tem também.


Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo no NR. + Textos da autora.

6 comentários:

Shirley disse...

Temos sim, todos nós. Mas como vc disse, cada qual guarda de um jeito. Quem diz que é impossível mudar o passado está enganado (e se enganando). Nós fazemos isso a vida inteira, adequando memórias para aceitar melhor os acontecimentos. Ou porque só assim eles se tornam suportáveis. Você lembrou da melancia, eu lembro dos roubos de caju em casas de vizinhas da vovó Ondina, em Navegantes; de jogar queimada na rua até anoitecer, em Irajá; de ir ao Ceasa a pé com meu pai aos sábados de manhã; das noites de natal, sempre muito divertidas quando éramos crianças e que se tornaram obrigações chatas como quase todas as obrigações... Enfim, tem um rio de memórias correndo permanentemente na minha cabeça, mas sei que só eu as tenho daquele jeito; essa é a minha historia, pessoal e intransferível. Linda crônica, Juninha. Beijo grande.

Anônimo disse...

Memórias tocantes,sim. A jarra de Mirinda ???Oh!Senhor ! Só você, com essa memória abençoada ,para se lembrar.Até parece que você se esqueceu dos tombos e machucados. Ah! Bom. O mataborrão do tempo os apagou .
"Criança feliz, que vive a cantar", como cantava o saudoso Francisco Alves.
Mummy Dircim

Anônimo disse...

Embalado por sonhos infantis...assim será este dia,
repleto de doces lembrancas , mesmo que a memória, travesssamente, nos traia. Afinal, como disse o grande Oscar, a vida é um sopro. Bj e saudades . Olga Ronchi

Anônimo disse...

No tempo em que as crianças deste país tinham sarampo por falta de vacina, eu tive. E me lembro de estar em casa, com febre altíssima, sentada numa cadeirinha de balanço e tomando um suco raro e caro na época: YUKI de maçã. Delicioso; só teve um porém, era morno, eu não podia tomar nada gelado. Mas minha mãe também esteve ao meu lado todos esses dias e hoje sei que teve muito medo de eu não suportar tudo isso. Mas estou aqui e com a memória bem vívida deste momento, mesmo que tenha ficado congelada e perfeita.
Texto tocante e memorável.
Beijos, Márcia Ester

Anônimo disse...

Cada dia melhor. Construções tão sofisticadas que parecem simples, fluidas como sedas bordadas à mão e teias de aranhas. Adorei! V. Lobo

Anônimo disse...

Lindo texto... doce e forte como você sabe ser. A delícia das memórias, escolhidas a dedo, como escolho agora as que quero que fiquem e que que se transformem em conto. Um dia eu também conto. Grata pela inspiração... um beijo Vera Golik

Postar um comentário

Ofensas e a falta de identificação do leitor serão excluídos.

Web Analytics