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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

quarta-feira, 27 de março de 2013

Tia Ciata e as tias baianas...

Uma história da Pequena África carioca


por André Carvalho ilustração Kelvin koubik "Kino"*

Eram embarcações repletas de negros que aportavam no Rio de Janeiro. Porém, ao contrário daqueles tristes tempos em que os navios que lá chegavam eram negreiros, estes traziam a bandeira branca de Oxalá. Era o sinal para avisar que mais uma leva de baianos forros desembarcaria na Baía de Guanabara.

O destino principal era o bairro da Saúde, próximo ao cais, onde muitos ex-escravos tornariam-se estivadores. Morando em cortiços e em outras instalações coletivas, não demoraria muito para o grande volume de africanos e afrodescendentes incomodar a elite branca higienista. Então, no alvorecer do século XX, o prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, promove uma grande reforma urbana, demolindo as habitações onde os negros haviam se instalado, ao chegar da Bahia.

Retirados de lá à força, passariam a ocupar os morros próximos, dando início à criação das primeiras favelas. Outros se retiraram para o subúrbio, morando próximo às estações de trem que se espalhavam pela cidade. Muitos, porém, residiriam em um espaço que viria a ser conhecido por Pequena África – nome dado por Heitor dos Prazeres –, que partia das margens do Campo de Santana e se estendia até a Cidade Nova, terminando nos limites do bairro do Estácio de Sá. Era lá que ficava a Praça Onze de Junho, reduto de celebrações carnavalescas e local onde se estabeleceram as tias baianas, que fariam história com suas festas religiosas e pagãs, de candomblé e samba. Foi lá que brincaram, cantaram e criaram ricas páginas do nosso cancioneiro os integrantes da primeira geração do samba carioca.

Quituteiras, mães de santo, foram articuladoras de uma sociedade – que se valia do matriarcalismo, herança direta africana – configurada às margens da “civilização” proposta pelas elites. As tias baianas eram lideranças sociais de uma comunidade que buscava se afirmar em uma nova cidade, uma nova civilização e uma nova era, onde os ex-escravos almejavam, finalmente, uma integração social que lhes foi negada desde o dia em que desembarcaram dos navios negreiros no território brasileiro. Em suas casas, configuraram-se espaços de aconchego, participação, luta e festa.

Para aqueles que chegavam à Pequena África, a primeira parada era, ou na casa da Tia Sadata, ou na casa da Tia Davina, verdadeiras embaixadoras da comunidade negra baiana no Rio de Janeiro. Elas ajudavam os recém-chegados a encontrar moradia e trabalho, dando guarida a eles enquanto as oportunidades não apareciam. Havia muitas outras: Tia Perciliana (mãe de João da Baiana, que traz no nome a ligação a sua genitora), Tia Amélia (mãe de Donga), Tia Celeste (mãe de Heitor dos Prazeres), Tia Bebiana (a passagem dos ranchos e dos cordões carnavalescos sob a janela de sua casa, na Praça Onze, era obrigatória), Tia Mônica, Tia Perpétua, Tia Veridiana, Tia Dadá (onde o compositor Caninha afirmava ter ouvido samba pela primeira vez).

Uma delas, no entanto, se destacou pelo grande poder de integração sociocultural, registrando o nome, para sempre, na história do samba: Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata. Nascida na capital baiana em 1854, migra para o Rio de Janeiro aos 22 anos de idade. Quituteira, monta seu tabuleiro na rua, mas é em sua casa que as coisas acontecem. O endereço, que depois entraria para história da música popular brasileira, é Rua Visconde de Itaúna, 177, Praça Onze, “Pequena África”, Rio de Janeiro.

Iniciada no candomblé no terreiro de João Abalá, Tia Ciata torna-se Iyá Kekerê, Mãe-Pequena, adquirindo, assim, grande respeito e influência na comunidade baiana local. Em sua casa, os cultos misturavam-se com as festas profanas. Também ali, era um espaço comunitário de trabalho. Os quitutes e doces, primeiramente oferecidos aos orixás, eram vendidos para fora. Tia Ciata também era exímia costureira e fabricava fantasias que as elites da Zona Sul alugavam para brincar o carnaval.

Casada com João Batista da Silva, consegue para ele um emprego de funcionário público de forma um tanto inusitada: curou uma doença grave na perna do então Presidente da República Wenceslau Brás, fazendo um trabalho a base de ervas e reza. A recompensa foi um cargo no gabinete de chefe de polícia para seu marido.

Muito por conta do cargo de João Batista, as constantes batidas policiais, que afligiam a vida dos negros, que sequer podiam se reunir para praticar os cultos e cantar o samba, passavam ao largo daquele espaço de celebração negra. As festas na casa da Tia Ciata duravam três dias. As panelas, sempre cheias, eram constantemente requentadas. A música envolvia a todos e, em cada espaço da casa, um ritmo predominava, obedecendo a uma reprodução sociocultural dos participantes das festas.

Na sala de estar, os mais velhos e bem-sucedidos praticavam o partido alto e o choro. O samba corrido, tocado pelos mais jovens, tinha espaço na sala de jantar, ao passo que a capoeira e a pernada ocorriam nas rodas de batucada no terreiro do quintal.

Eram bambas aqueles que frequentavam o local: Donga, Pixinguinha, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, Caninha, Sinhô, Marinho que Toca (pai de Getulio Marinho), João da Mata, Didi da Gracinda, Hilário, João Cancio, Getúlio da Praia, Oscar Maia, Alfredinho, Tisco, Germano e Getúlio Marinho batiam cartão por lá. Os “distintos” Manuel Bandeira, Mario de Andrade, Mauro de Almeida e João do Rio também não perdiam as grandiosas festas que ocorriam ali.

Destes encontros musicais, nasceu o samba Pelo Telefone, o primeiro gravado sob o nome de samba na incipiente fonografia brasileira. Criado de forma coletiva, a música foi registrada, ardilosamente, pelo sambista Ernesto dos Santos, o Donga, como único autor – ele recolheu os estribilhos, adaptou e inseriu a letra de Mauro de Almeida na composição (que apareceu como parceiro nas gravações posteriores), uma das mais emblemáticas da história de nossa música.

A polêmica sobre a real autoria da composição rendeu debates acirrados, paródias e sérias acusações. Fato é que a música segue popular quase cem anos após a sua criação. Em 1924, Dona Hilária Batista de Almeida, a Ciata de Oxum, parte para o Reino de Aruanda. Não se escutariam mais os pandeiros, cavacos, violões e atabaques naquele logradouro histórico. Pouco depois, uma nova geração, baseada no bairro do Estácio de Sá, revolucionaria a música popular urbana carioca, dando nova roupagem ao ritmo nascente que seria batizado como samba. Era a segunda geração de sambistas do Rio, cujos principais nomes seriam Bide, Baiaco, Mano Rubens, Mano Edgar, Marcelino, Ismael Silva, Nilton Bastos, entre outros “valentes”. Mas isto é história para outra crônica.

Escute três versões de "Pelo Telefone". A primeira versão com letra, de 1917 (interpretada por Bahiano), a gravação de Zé da Zilda (de 1938) e, finalmente, o registro de Martinho da Vila, de 1973" Para saber mais, acesse a bibliografia que preparamos para você. 




*André Carvalho, jornalista, mantém a coluna mensal Batucando, sobre samba. Ilustração de Kelvin Koubik, "Kino", colunista do NR, artista visual, grafiteiro e músico de Porto Alegre

2 comentários:

Letras Taquarenses Blog disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Letras Taquarenses Blog disse...

AC, seu artigo e a ilustração serão usados e referenciados em meu artigo no TERREIRO DE BAMBAS....http://terreirodebambas.blogspot.com.br/

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