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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 21 de maio de 2013

Reais-ficções de carnaval



por Aleksander Aguilar*

Na finaleira mesmo, na madrugada de quarta pra quinta, quando só estão de pé os mais aguerridos e/ou desesperados foliões, um bloco de massa muito conhecido do carnaval de Olinda faz sua passada arrastando, literalmente, multidões pelas ruazinhas de paralelepípedo da Cidade Alta. E segundo o que dizem os que por ali já suaram o ambiente é tenso, “só dá os mala”.

A empolgação que se extravasa às vezes vai pro nível da provocação. Desta vez sobrou foi é pro carro da polícia meio que pelo meio do caminho do bloco e da massa animada: cocos e latas de cerveja direto no veículo das autoridades, que se arretaram e foram atrás dos mala, descendo o cacete mesmo em quem quer que parecesse suspeito, incluindo Fernando, que nem tinha feito nada, mas que tava por ali parado (parado justamente por não ter feito nada) estando, assim, no lugar errado na hora em que o apetite da resposta policial era o mais voraz.

Preto e de longos dreadlocks, Fernando já foi arrastado direto pro camburão, enquanto o amigo Jair protestava, até esbravejando bem por perto a música Porcos Fardados do Planet Hemp, mas bem branquinho, galego, que era, não lhe aconteceu nada, nem tocaram, nele, já o neguinho...

E apanhou que só, visse! Bateram, bateram, e foi passar a noite na delegacia de Olinda, ali na Praça do Carmo, numa cela “nojenta”, segundo ele, e num estado todo esgualepado, diríamos no Sul, tendo que lidar com sua perda.

Sim, Fernando perdeu, e a faca, os seus longos dreads. Cortaram só de maldade – como parte da punição que a autoridade sentenciou e executou sem julgamento – as maçarocas de cabelo cuidadosamente cultivadas, pro divertimento dos guardinhas no plantão, provavelmente aborrecidos e recalcados de terem trabalhado durante todo o carnaval. Pela manhã Fernando foi jogado no meio da rua, ali por perto da Faculdade, e lhe atiraram por cima a carteirinha plástica onde guardava a identidade, os passes para o ônibus e o dinheirinho dobrado que entocara para uma emergência, mas agora sem o dinheiro, nem os passes.

E sem nem poder pegar um ônibus, Fernando tão desorientando quanto descabelado, e todo dolorido, teve que conseguir que uma das vans que fazia a linha Olinda-Recife na época, lhe desse uma carona.

Teve sorte e conseguiu ir até a Praça do Derby, e de lá sem outro remédio senão seguir a pé pela avenida Caxangá a fora, pensando no caminho até a zona do Cordeiro o que fazer com a sua história. Tomado de indignação, encheu-se de coragem, e denunciou tudo aos órgãos judiciais competentes, que abriram investigação e cordialmente lhe recomendaram: “É melhor você sair daqui por algum tempo”.

Risco de revanche policial dizem que é foda! Fernando falou com a sua mãe, e os dois realmente saíram, pra a capital de um Estado vizinho de Pernambuco, que é pra não ficar muito longe. Além do cabelo, Fernando perdeu liberdade, e quem ganhou foi a impunidade e o medo. Agora Recife/Olinda é só de visita duas ou três vezes por ano, mas incluindo o carnaval!


*Aleksander Aguilar, jornalista, acadêmico, candidato a escritor e viajante à “Ítaca”, especial para o Nota de Rodapé

4 comentários:

Andy Lima disse...

Que absurdo, mas infelizmente é uma realidade!
Quem deveria proteger...

Maria Emília disse...

Boa reflexão sobre liberdade, violência e desigualdades! Dá-lhe Aleksander!

Di disse...

"Além do cabelo, Fernando perdeu liberdade, e quem ganhou foi a impunidade e o medo." Lamentável, mas infelizmente real no cenário do nosso lindo, mas violento País.

Juliana Vitorino disse...

Quantos Fernandos a cada carnaval? Num carnaval que se orgulha de ser multicultural não se respeita gente, não se respeita sequer o direito das gentes em fazer festa. Quantos Fernandos a cada dia?

Por Fernando, por outros jovens negros, com dreads cortados à força, com caminhos truncados ou sustados: meu silêncio de vergonha.

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