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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Vida mansa


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna

Lá nas bandas de onde eu vim, branco era branco, preto era preto, pobre era pobre e rico era rico. Todos católicos, menos nós e mais uns gatos pingados, que o cônego italiano adorava infernizar.

Sanduíche de mortadela era a delícia suprema no lanche da escola, quando nossa pobreza me permitia uns trocados pra gastar na padaria. Melhor do que isso, só as maçãs argentinas, que comia escondida no banheiro da escola “pra não dar vontade nos outros”, dizia a professora. Escola pública de antes da universalização do ensino; lá aprendi tudo o que sei.

A cidade era cercada de canaviais e laranjais. Depois que se instalou a primeira fábrica de suco para exportação, todas as tardes subia o doce cheiro de bolo de laranja, provavelmente resultado do processamento da casca da fruta. A cana era cuidadosamente descascada e picada em pedaços tão pequenos que cabiam inteiros na boca. Dela se fazia a garapa, que mais tarde ganhou o nome bobo de caldo de cana.

Seguia mansa a vida. Minha mãe trazia tecidos da loja da minha avó, que morava em outra cidade. Íamos juntas levá-los à costureira Mercedes, que os transformava nos figurinos das revistas. A modista vivia ao lado do quartel do exército, com o marido ferroviário e muitas filhas. Fascinava-me a quantidade de tecidos, retalhos, aviamentos, moldes de papel, fitas métricas e carretéis de linha colorida amontoados por todos os lados. Misturavam-se crianças, cachorros, café e o cheiro do refogado do arroz.

Os professores estão em greve, ouvi um dia ao chegar à escola. Hoje não tem aula. E não teve por meses a fio. Depois foram os ferroviários, em assembléia permanente num galpão do centro da cidade. Meus pais participavam de mutirões que preparavam sanduíches de queijo para os grevistas.

Até aquele dia. A cidade se encheu de soldados. “Finalmente se tomou uma providência para por ordem neste país” – explicou a professora – “estudantes e sindicalistas só querem baderna”. Era dezembro, mas os dias eram cinzentos e eu sentia um frio na barriga.

Quando voltamos à costureira, soubemos que o marido estava preso no quartel vizinho. Por quê?, perguntei, espantada, pois para mim cadeia era coisa de ladrões e bêbados. Ninguém respondeu. Meu pai foi chamado para um interrogatório. Quase morremos de medo durante as horas que ele passou lá. Voltou ileso, mas amansou seu discurso sobre os milicos, que sempre havia desprezado e ridicularizado.

Minha vida continuou sem sobressaltos, no entanto nunca mais foi a mesma. Embora não entendesse o que se passava, sentia o medo, a vigilância constante, via velhos apresentando documentos a soldados adolescentes e aprendi que os adultos tinham sempre que provar quem diziam ser.

Uma nova matéria foi incluída no currículo escolar. Chamava-se Educação Moral e Cívica. Falava da importância da religião católica, da família e dos valores ditos cívicos, como patriotismo e guerra ao comunismo e à subversão, tudo misturado no mesmo balaio. Tentaram explicar o que se passava, com louvações aos heróis militares e canções de amor ao Brasil, “meu coração é verde, amarelo, branco e azul anil”. No começo, até fui na onda, mas perguntava muito, e a falta de respostas só me fazia pensar mais. Levei uns bons anos para entender.

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

3 comentários:

Anônimo disse...

Nossa Senhora! Agora voltei no tempo mesmo; até senti o cheiro de bolo de laranja invadindo a cidade no final da tarde.
Essas memórias me fazem bem quando você escreve. Até a situação de terrorismo escamoteado vivida na época você consegue dizer que, de alguma forma, nós vencemos. É bom a gente se lembrar para não deixar acontecer outra vez.
E o sabor do sanduíche de mortadela mora na minha memória gustativa para sempre. Márcia Ester

Anônimo disse...

Menina inteligente,observadora e silenciosa ! Nunca comentou esses fatos. Como conseguiu retê-los nessa abençoada cabeça ? Sua crônica de hoje me fez lembrar dos duros tempos que, graças a Deus, já se foram. Mas, como disse a Márcia, apareceu, de repente, o cheiro inesquecível do bolo de laranja, que parecia amenizar a pressão do dia-a-dia.
Hoje o importante é sentir a maneira como você descreve, com tanta clareza e fidelidade,fatos que marcaram uma época quando você era bem pequena e pensava-se que as crianças não estavam vendo e sentindo o momento.
Bjs da Mummy Dircim

Pastora Leila Müzel dos Santos disse...

Entro aqui para mais uma vez felicitar a beleza da tua escrita que faz a gente viajar e rememorar tempos difíceis vencidos. Sinto-me agraciada por ter tido o privilégio de conviver com Mr. Puglia... que saudades da simpatia e da amizade desse homem! Mummy Dircim, me passou silenciosamente muitas lições de vida e vocês nos propiciaram doces momentos nas férias. Então, ler tuas cronicas tornou-se uma rotina obrigatória das minhas sextas feiras... doces lembranças! bjks

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