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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Heróis e santos


por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*

Uma das características mais interessantes da cultura brasileira é a nossa irreverência em relação às figuras heroicas (quase todas homens). Não lhes damos muita atenção, não as cultuamos nem homenageamos. Na verdade, não as levamos a sério. Parece que todas as personagens supostamente míticas que atuaram no nosso passado, e de alguma forma nos moldaram como país e sociedade, foram submetidas ao crivo implacável do tempo, que vai-lhes desvestindo o figurino heroico e revelando personalidades bastante humanas, tão parecidas com as de todo mundo, que o pedestal perde o sentido.

A pesquisa e perspectiva históricas têm desempenhado um papel muito importante neste processo. Hoje sabemos o quanto interesses políticos, econômicos e pessoais nada louváveis, quando não francamente escusos, atuaram em episódios ou processos antes relatados sob a ótica que mais convinha. Ou será que alguém ainda acha que a conquista das Américas pelos europeus, por exemplo, foi um processo belo e justo?

Na verdade, a manutenção de figuras míticas ao longo do tempo é muito mais um produto da propaganda ou da fantasia coletiva do que a confirmação de feitos extraordinários e desinteressados, sobre-humanos. Lembro-me da única vez que estive em Cuba, há uns dez anos, e de como me impressionou a repetição exaustiva dos nomes e façanhas dos heróis oficiais da revolução socialista, começando pelos programas infantis na televisão.

Se tenho um herói, ele é Nelson Mandela. A despeito das críticas que se lhe façam ou dos erros que tenha cometido, o saldo da sua contribuição para o mundo me parece amplamente positivo. Prefiro assim, admirar alguém, preservando a consciência das limitações impostas pela condição humana. Talvez por isso me soe tão ingênua a expectativa, expressa por muitas pessoas, de que figuras públicas sejam perfeitas ou desinteressadas, quase santas.

Falando em santas, não posso deixar de mencionar Madre Teresa de Calcutá. Admirada no mundo todo, já era meio santa em vida e está prestes a ser oficialmente santificada por sua igreja. Mas que figura sombria foi esta senhora! Decidida a viver entre os doentes e os miseráveis, não hesitou em usá-los como um meio fácil e indecente de atender sua necessidade pessoal de glorificação da dor e do sofrimento; na verdade, esquivou-se de curar as doenças e aliviar a miséria dos muitos que a procuraram. Atraiu para sua mórbida missão um grande número de voluntárias e recebeu, nas palavras da sua sucessora, recursos financeiros “incontáveis”, que, segundo diversos relatos, não foram empregados em prover atendimento médico e dignidade, mas na construção de conventos e em gordos depósitos nas contas bancárias da sua igreja. Por sinal, a mesma instituição que faz tudo o que pode para impedir o avanço da liberalização do aborto com argumentos “pró vida”. Infelizmente, nada disso surpreende.

Tanto o heroísmo quanto a santidade pressupõem super pessoas, que se situam além e acima das limitações e interesses humanos, como se fosse possível. Prefiro gente comum, que me inspire com suas atitudes e visão da vida, mas que me deixe ver também como somos iguais e como precisamos uns dos outros.

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

2 comentários:

Carlos Augusto Medeiros disse...

Olá Júnia. Adoro heróis! De todas as óticas. Como via de regra se prestam a atender interesse da parcela dominante de uma sociedade, eles vão perdendo o encanto com o amadurecimento. Mas a ideia é fantástica. Alguém com metavisão e metaponto de vista, incólume à diversidade social, pronto para aprimorar o desenvolvimento humano. Criamos os nosso por aqui também. A maioria ligada a esportes. Veja, com exemplo, o volei que não era nada antes do final dos anos 1980 e hoje até dupla virou notícia. Não se faz isso sem heróis. Beijos, Carlos.

Gisele Netto disse...

Junia, você é o máximo. É a primeira vez na minha vida que ouço/ leio alguem falar mal da Madre Teresa de Calcutá, e seu parágrafo faz TOTAL sentido. Já tô epsquisando de um TUDO aqui an internet. Obrigada por me abrir os olhos mais uma vez! Grande beijo

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