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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

terça-feira, 30 de julho de 2013

O espelho de Tereza

 por Alexandre Luzzi  ilustração Marcelo Martins Ferreira* 

A grande insatisfação que muitas pessoas possuem em relação ao próprio corpo ao se olharem no espelho é fruto de uma imagem que perambula no território do nosso inconsciente?

Milan Kundera e seu clássico “A insustentável leveza do Ser” nos ajuda a pensar sobre isso. Na obra a personagem Tereza tem o hábito de ficar se olhando horas no espelho, numa atitude com nuances de proibição. Dentro da convivência familiar de Tereza toda forma de privacidade é reprimida e satirizada. “Como um campo de concentração”, sugere ela sobre a convivência com a mãe e o padrasto. Mas a atitude tem uma peculiaridade: não era a vaidade que a atraía para o espelho, mas o espanto de se descobrir nele.

A contrariava encontrar em seu rosto traços da mãe, nem tanto pela similaridade física e mais pelo fato de sua vida ser um prolongamento da vida da progenitora. Tereza se incomodava com regiões do corpo, como os seios, os quais desaprovava o tamanho e as aréolas grandes e escuras demais.

Pensava sobre como ficaria se o nariz crescesse um milímetro por dia. Nessas contemplações angustiantes imaginava: “E se cada parte de meu corpo começasse a crescer ou a diminuir a ponto de me fazer perder toda semelhança comigo mesma? Eu existiria ainda, mesmo assim? Qual a relação entre 'eu', Tereza, e meu corpo?”

Existem motivos para tamanha insatisfação e recusa? Será que temos uma percepção direta e real de nosso próprio corpo? Ou será que entre a imagem projetada e o que sentimos existiria um filtro de fantasias e sentimentos infantis?

Talvez a imagem  refletida no espelho toda vez que nos colocamos diante dele não seja a mesma inscrita na superfície virtual do nosso inconsciente. O psicanalista Juan David Nasio sugere essa hipótese.
“sempre que sentimos o nosso corpo, o vemos ou julgamos, estejamos certos, forjamos dele uma imagem deformada, inteiramente afetiva e resolutamente falsa. Para resumir, nunca percebemos nosso corpo tal como é, mas tal como o imaginamos; o percebemos como fantasia, isto é, mergulhado nas brumas de nossos sentimentos, reavivado na memória, submetido ao julgamento do Outro interiorizado..."
O conflito de Tereza parece confirmar o dizer de Nasio. Do fundo de sua alma surgia a representação inconsciente de um corpo marcado por uma relação familiar em que tonalidade afetiva era o ódio e a culpa. Tal situação se traduz pela cena protagonizada por sua mãe ao ver a filha trancar a porta do banheiro ao reparar que seu marido sempre entrava quando ela estava nua no banho. “Por que você se trancou? Quem você pensa que é? Ele não vai arrancar pedaços de sua beleza!”, esbraveja a mãe.

Um certo ódio da mãe pela filha era mais forte que o ciúme que o marido lhe inspirava. Em contrapartida, a culpa de Tereza era infinita se martirizando até pelas infidelidades do padrasto.

Kundera e seu romance nos coloca diante da experiência enigmática do efeitos da imagem que se reflete do espelho. Seja em maior ou menor grau, jamais encontrei na minha vida profissional alguém totalmente satisfeito com o próprio corpo. A transformação estética do corpo, dentro dos padrões valorizados pela cultura e o olhar do outro parece não resolver um sentimento de maior valorização de si mesmo. Para o estímulo à reflexão, deixo o leitor com uma pergunta final, de autoria do grupo musical Capela – "Será que o espelho irá me mostrar alguém que não eu?"


*Professor de Educação Física, capoeirista, Alexandre Luzzicoordena o espaço Tai Ken e mantém a coluna mensal Corpo a CorpoMarcelo Martins Ferreira, ilustrador, design e músico, especial para o texto

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