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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Vírus


por Júnia Puglia ilustração Fernando Vianna*

Pareceu-me uma grande ideia. Ao me dar conta de que tinha acesso a um personagem importante vinculado ao acordo entre Brasil e Cuba para a vinda de médicos da ilha para trabalhar no Brasil, ocorreu-me entrevistá-lo, buscando uma oportunidade de trazer informações úteis, talvez inusitadas, para os meus leitores, bombardeados por todo tipo de comentário e análise do tema, desde os mais lúcidos e consistentes até os vergonhosos ou alucinados.

O personagem generosamente concordou em conversar comigo, mas a entrevista acabou não acontecendo, devido às exigências de agenda de quem está no olho de um dos furacões da vez. Perguntei aos meus botões como contornar a situação. Eis a resposta desabotoada.

Quase tudo o que se compra e vende no mundo, hoje, é fabricado na China, ou tem alguma peça ou componente fornecido por fontes chinesas. Como bem sabido, trata-se de um país controlado com mão de ferro por um regime que persegue, condena e mata pessoas por razões de consciência e, nos dias de hoje, ainda controla uma boa parte dos meios de produção. Direitos humanos são assumidamente ignorados por lá. Pagam-se salários irrisórios a operários que trabalham em condições nada edificantes, segundo inúmeros relatos e constatações. A recente pujança econômica da China tem custado um alto preço aos seus habitantes. No entanto, não me consta que algum brasileiro, de qualquer profissão ou nível de vida, tenha se recusado a comprar produtos fabricados na China, como protesto pelas atrocidades do regime ou em solidariedade aos trabalhadores explorados e maltratados.

Então, ficamos assim: comprar bugigangas chinesas pode, receber médicos cubanos, supostamente escravizados, que vão atender pessoas que provavelmente nunca foram examinadas por um médico, isso não pode, sob argumentos cada vez mais absurdos. E no meio da lambança que se armou, não consigo captar uma só entidade médica expressando um minuto de preocupação com os milhões de brasileiros excluídos de qualquer possibilidade de atendimento. A elas, um pedido: poupem-me do seu cinismo, por favor. Mas acho que é pedir muito.

Surfando neste meu momento clichê, quero dizer que eu tenho um sonho: que médicos cubanos, baianos, ucranianos, marcianos, de qualquer parte, espalhem entre nós um vírus mortal, que corroa o mercantilismo, o elitismo, o corporativismo, a ganância, a mesquinharia e outras doenças crônicas instaladas de forma profunda e duradoura no coração daquilo que chamamos de medicina e saúde. E que atinja também, com igual intensidade, a inépcia, a irresponsabilidade e a desfaçatez do Estado. É sonho pra mais de metro.

*Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

3 comentários:

Anônimo disse...

BEM-VINDOS VÍRUS DA ORDEM E PROGRESSO.ATÉ QUANDO O POVO BRASILEIRO , QUE PERMANECE PASSIVO EM SUA MAIORIA, VAI SE INSURGIR CONTRA O ESTADO REINANTE ? ACORDA, BRASIL !!!
BJS DA MUMMY DIRCIM

Anônimo disse...

É isso aí, minha querida, muito perspicazes os seus botões! E que o vírus corroesse também caras de pau como a daqueles que insistem em dizer que mais médicos vão dar conta, mesmo sabendo que sem instalações apropriadas, medicamentos e equipamento não haverá milagres. Esse seu sonhado vírus seria muito benéfico ao meu fígado, bombardeado pela indignação que toma conta de mim diante de tantas misérias promovidas por aqueles que fazem o Estado, e que se ressentiu muitíssimo esta semana ao ouvir a manteiga falar: "não se preocupe, senhora dona de casa, que isto não vai atingir os preços do supermercado..." Qual é, cara pálida, já atingiu, e muito! Ai, ai, até aqui eu quero desabafar... Obrigada, Júnia, por mais esse texto lúcido e agradável de ler. Fernando, a ilustração, como sempre, na mosca! FF

Anônimo disse...

É isso, querida Junia! Que venham e ensinem compromisso, dignidade e amor genuíno à vida e à profissão. Obrigada pela reflexão sempre inquietante. Bj.
Olga Ronchi.

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