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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Macho do tipo "casca grossa"


por Alexandre Luzzi*

O que significa ser homem? Será que nascemos homem? Como alguém se transforma em um sujeito de gênero? A relevância dessas perguntas se torna óbvia, na medida que todo preconceito relacionado às questões de gênero se fundamenta na concepção de que as características biológicas são suficientes para definirmos se é “menino” ou “menina”. Ou seja, qualquer opção de identidade de gênero que não se identifique com as características biológicas do sexo é considerada, portanto, um desvio da norma.

A filósofa Simone de Beauvoir afirmou, por exemplo, que “ninguém nasce mulher: torna-se uma”. A estória de Sísifo pode nos ajudar a pensar a questão.
“Sísifo desce correndo as escadas de sua casa, passa pela sala onde encontra seu pai dormindo no sofá, vai até a rua e observa uma cena espantosa: uma mulher dando pedras de alimento para um cachorro cego, desses bem agressivos da raça Pitbull. O rosto da mulher era familiar, no entanto, não lembrava exatamente de onde a conhecia”.
De repente sua mãe entra no quarto, como quem entra na alma de alguém sem pedir licença. Sísifo acorda de seu sonho com uma estranha sensação: uma mistura de medo com dor na “boca do estômago”.

O rapaz de vinte e nove anos sempre teve a impressão de carregar as pessoas internamente, nos seus órgãos corporais, e esse sonho, recorrente, deixava isso cada vez mais claro. Talvez não há a possibilidade de pensarmos a questão da identidade sem situá-la no espaço “entre-dois” de uma intensa relação afetiva. Nosso “Eu” constrói-se ao mesmo tempo que se esparrama pelo mundo, assim como os outros “Eus”, significativos para cada um de nós, são interiorizados e se instalam em nosso corpo.

Sísifo era um professor de artes marciais e toda sua vida foi marcada pelos imperativos do movimento e da luta. Com anos de prática construiu um corpo forte e musculoso. A imagem adequada ao seu ideal de masculinidade.

No ambiente das artes marciais os pontos de sustentação da masculinidade são facilmente reconhecidos. Mais homem é aquele que sabe lidar com as dores físicas. É o mais corajoso e agressivo, aquele que não tem medo da luta. Mesmo em uma derrota, os lutadores que suportam os piores castigos sem desistir eram considerados grandes guerreiros. Já aqueles que não conseguiam passar por cima da própria dor e superar seus medos são considerados “frouxos” [expressão utilizada com frequência].

Para se enquadrar nesse padrão, Sísifo suportava todo tipo de carga nos seus treinamentos. Sua força física externava sua própria fraqueza na inabilidade de lidar com suas emoções. A apatia e a falta de movimento em seu mundo emocional eram simbolizadas no excesso de movimento corporal. Assim, Sísifo não conseguia parar de lutar. Na luta sempre teve um desafio maior do que os seus oponentes: aprender a lidar e canalizar a raiva, outra emoção que afetava de forma indelével seu corpo.

Em sua personalidade e mesmo na aparência física, poucas coisas lembravam seu pai, um sujeito muitas vezes considerado por Sísifo como um ilustre desconhecido. As influências dos homens por parte da família de sua mãe eram mais visíveis, em especial uma: seu padrinho Paulo Honório.

Paulo Honório tinha como matriz de sua subjetividade masculina todo o peso do século XIX mesmo vivendo no século atual. O domínio sobre a mulher e o poder absoluto do proprietário sobre suas “posses” materiais e humanas sustentavam sua masculinidade.

E Sísifo cresceu ouvindo a mitologia dos feitos de seu padrinho como as brigas nos campos de futebol, as conquistas e romances com inúmeras mulheres, seu empreendedorismo e sua força de fazer valer o seu desejo. Para um garoto que aprendeu a se reconhecer no espelho do olhar da mãe como o eleito, um ser completamente especial, a identificação com os feitos de seu padrinho eram muito mais atrativas do que a personalidade mais calma e serena do pai.

Assim Sísifo foi construindo-se como sujeito (subjectum, assujeitado), na identificação com mestres de luta onde a expressão da força e da destreza físicas eram símbolos de uma masculinidade ideal. Assim como na identificação com Paulo Honório: um homem que transformava a arte da convivência em um ato violento, pelo seu desejo implacável de moldar o outro.

Mas entre o ideal e o real há sempre um abismo onde a descida é dolorosa e assustadora. Para evitá-la, Sísifo recorria à utilização de drogas, estimulantes e anabolizantes, transformando seu corpo em uma "casca grossa", afastando-se cada vez mais de seu mundo emocional e recusando-se a encarar a luta de lidar com tudo que está aquém do ideal, no caso, o peso da angústia de existir.

Sem consciência do fardo que carrega, como um cachorro cego que cheira carniça e sente-se diante de um banquete, há poucas chances do herói absurdo reconstruir sua subjetividade e se tornar protagonista de sua própria história.

Ao anoitecer, depois de mais um dia com uma carga excessiva e extenuante de treino Sísifo adormece. No meio da noite acorda assustado com uma sensação de medo tomando seu corpo e se instalando novamente no estômago. Quando a consciência vai assumindo seu lugar, Sísifo se lembra do seguinte sonho: 
“Dentro de um tribunal, um juiz com dimensões enormes e com um aspecto de um Deus mitológico, condena-o para um trabalho forçado. Sísifo fora condenado por um crime que ele não tinha consciência se havia cometido ou não. Sua sentença: carregar uma rocha enorme e pesada até o cume de uma montanha, de onde tornava a cair por seu próprio peso, um trabalho inútil e sem fim.”

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Professor de Educação Física, capoeirista, Alexandre Luzzi coordena o espaço Tai Ken e mantém a coluna mensal Corpo a Corpo.

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