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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Questão de segurança


por Júnia Puglia   ilustração Fernando Vianna*

Quem já cumpriu a quarta década sabe como era: qualquer assunto indesejável, que implicasse contrariar os desígnios dos senhores fardados e seus muitos asseclas, era rotulado como “questão de segurança nacional” e tratado de acordo. E segurança nacional era um balão inflável, dentro do qual cabia de tudo, desde que tivesse o objetivo de proteger azelite e a classe média contra as terríveis ameaças do comunismo. Entenda-se por “comunismo”, neste caso, o regime político em si, mais o distanciamento da religião católica tradicional, da moral e dos bons costumes já consagrados, da sexualidade entendida e aceita socialmente, dos pobres e pretos conformados com o lugar designado para eles. O país mergulhou numa noite fria e muito escura, que encobriu mortes, tortura e as penas do inferno em vida para muita gente.

Por sua profunda incompetência política e de gestão, sem falar da supressão da liberdade (que sempre cobra um alto preço), a ditadura teve um fim patético, do ponto de vista formal, há quase trinta anos. Mas deixou pegadas malditas, que para mim nunca estiveram tão claras como agora. A mais gritante delas é o fosso que separa os encastelados, protegidos por fortalezas e aparatos bélicos, dos que só muito recentemente estão adquirindo o status de sujeitos titulares de direitos, muito contra a vontade dos primeiros.

Todos conhecemos relatos de escravos, prisioneiros ou miseráveis apáticos, alienados de sua própria condição que, na primeira oportunidade de libertação, reagem de forma brutal contra seus algozes, ferindo-os ou matando-os sumariamente. Nunca se deve subestimar a dor e o ódio do zumanos.

Pois os pobres, os pretos, os peões, as empregadas e os jardineiros estão comendo, estudando, aprendendo e desejando, como nunca, e fazendo tremer o mundinho encastelado. Os shoppings, aonde, nesses tempos inseguros, se vai para comprar e também para tomar um café ou um sorvete, aproveitar o ar condicionado e a conexão wi-fi ou andar à toa, estão na mira dos enjeitados, sujos e barulhentos, que não se contentam mais com a rua. Encontram portas fechadas, polícia e ordens judiciais. A vizinhança dos bairros “de bem” aplaude.

Quanto mais se aprofunda o fosso, mais ele é exposto, num movimento de retroalimentação desesperador. Os noticiários confirmam o que estou dizendo, lá do jeito deles, pois expõem as nossas misérias o tempo todo, num sem fim de corrupção, fraudes, negociatas, racismo, homofobia, assassinatos, sequestros, mais assassinatos, mais racismo, mais tiros, mais bombas, mais grades, mais câmeras, mais sistemas de segurança residencial, mais treinamento de funcionários de condomínios fechados, mais explosões de caixas automáticos, mais medo, real e fictício, mais mais mais.

No fim das contas, a questão da segurança nunca passou de um pretexto. Na ditadura, para perseguir, oprimir, prender, torturar e matar. Atualmente, também, agora travestida de proteção aos que sempre tiveram o Estado do seu lado e se serviram dele até o osso. O aparato de segurança, e a sociedade como um todo, estão tentando lidar com um país incompreensível, com métodos e estratégias de validade mais que vencida.

Não sou especialista no assunto, falo do que sinto e observo. Aliás, não estou dizendo nenhuma novidade. Nossos sistemas políticos e sociais se baseiam em princípios tão equivocados, que o que realmente surpreende é que tenhamos chegado até aqui, acumulando tamanha desigualdade, tanto vício consumista, tantas diferenças e tanta separação, no nosso país e no mundo. Ainda bem que chegamos, pois assim temos a chance de ser mais inteligentes e competentes do que temos sido.

Na minha condição de otimista de carteirinha (talvez ingênua, não descarto), continuo acreditando no diálogo, na negociação, na busca do bem comum, na aproximação – em oposição ao fosso – em diminuir, ao invés de ampliar as diferenças, em compartilhar mais e disputar menos, em contradizer as expectativas nefastas que pairam sobre nós, caso não encontremos formas de convivência mais generosas e menos segregacionistas. Mas é indispensável abrir mão das pegadas malditas, deixá-las para trás. E, quem sabe, alcançar a segurança nacional, a verdadeira, para todos nós. Convém não subestimar o instinto de sobrevivência e a capacidade de superação do zumanos.

* * * * * * 

Júnia Puglia, cronista, mantém a coluna semanal De um tudo. Ilustração de Fernando Vianna, artista gráfico e engenheiro, especial para o texto.

4 comentários:

Carlos Augusto Medeiros disse...

Gosto da ideia da imposição de uma classe sobre as demais. Estou muito curioso para saber como as sociedades que se fundaram na exclusão vão lidar com a inclusão imposta. Estamos em um movimento irreversível e sem precedentes. Olhe o nosso tamanho. Veremos... Abraços, Carlos.

Anônimo disse...

Análise excelente da situação brasileira do momento. Não creio que estarei viva a tempo de ver a tal "inclusão social" funcionando. Prefiro mil vezes que haja alguém "carregando o piano", como se costuma dizer , dando ordens e comandando com autoridade, a assistir essa balbúrdia que está tirando não só o sono mas, também, ceifando vidas de nosso povo. Isto que se pretende chamar de inclusão social da forma como vem sendo feita, nada mais é do que cópia mal feita (se for possível) do que aconteceu com a Cuba do amigo da Presidente (não escrevo presidentAAA ) . Mas o assunto é extenso, o tempo curto e deixo aqui meus cumprimentos pela amplidão que você conseguiu dar a problemas tão graves em tão pouco espaço.
Continue brilhando. Beijos da Mummy Dircim

Edu Rumenig disse...

Parabéns pelo texto e muito obrigado pelas reflexões que suscitaram.
Efetivamente existe uma espécie de criminalização de qualquer movimento político e social, ou mesmo manifestações espontâneas como no caso recente do metrô. A violência, e nisso estamos de acordo, parece ser resultado de políticas públicas equivocadas, da ganância e egoísmo de uma certa parcela da sociedade e Estado.

Entretanto, o exemplo dos jovens pobres e deslocados ávidos por consumir roupas de marca e celulares de última geração não me parece uma forma efetiva de inclusão social e democratização do país. Essa parcela da população realmente está acessando os bancos escolares e centros de compra, mas não significa que estejam caminhando para a superação das contradições que você apontou (vou tentar arrefecer seu otimismo). Esses movimentos ávidos pelo consumo e pelos hábitos da classe média, na minha modesta opinião, resultam de um mamonismo que não incluí nem promove equidade, mas alienam e aumentam ainda mais as contradições, favorecendo a manutenção desse modus operandi que você repudiou no artigo.

Curiosamente, e aqui minha referência não deve ser considerada como modelo, enquanto a esquerda de certos países brandam boicote ao consumo (sobretudo das grandes marcas que utilizam vietnamitas ou chineses, trabalhando incontáveis horas em condições degradantes), a bandeira levantada aqui é o consumo, como se isso fosse sinônimo de cidadania.

Nasci e resido na periferia de São Paulo (Guarapiranga). Obviamente presenciei boa parte dos meus amigos conquistando as mais lindas garotas do bairro circulando sobre motocicletas e ostentando roupas, bonés e óculos onerosos para o salário de seus pais. Muitos desses garotos acabaram presos, foram assassinados ou não puderam prosseguir em sua formaçáo acadêmica em função da contingência, pois cedo constituíram família e foram obrigados a assumir suas responsabilidades, na maioria das vezes trabalhando em condições próximas aos nossos amigos chineses ou vietnamitas.

Portanto, a análise é pertinente e talvez, com algum esforço, seja possível associar o apelo desses jovens a necessidade de se incluir. Mas acredito que mais importante seja mostrar a conduta equivocada e a inversão de valores das quais são vítimas.

Talvez a Sociologia da Moda (Simmel) explique melhor a resistência dessa classe média alta sobre a possibilidade de consumo desses grupos de baixa renda, na medida em que a moda me distingue dos demais e ao mesmo tempo possibilita me identificar a um grupo restrito. Se esse fator torna-se acessível, o interesse se esvai pois a possibilidade de diferenciação também acaba. Adicionalmente, “O capitalismo como religião” (Lowy) também ajuda a interpretar uma parcela desses movimentos, sobremodo o desejo de adquirir os hábitos da classe que os rechassa, como se esse sistema político econômico fosse inexorável, a única possibilidade.

Obrigado e abraço,
Edu!

Anônimo disse...

Concordo com o Edu. Aliás, por que será que não há um movimento popular semelhante para reivindicar igualdade na educação, melhores escolas, professores mais bem preparados, mais bem remunerados? O que vemos nesse sentido são manifestações de ONGs, professores, sem tamanha mobilização/participação popular... Fefs

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