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30 de Julho de 1929, jovens velejadoras no porto de Deauville, França (Getty Images)

segunda-feira, 14 de abril de 2014

O preço da admiração

por Cidinha da Silva*

A moça posta vídeo de um grupo de cantores gospel no mural da escritora. Esta, xinga o Facebook, pois, rebelde, o sistema não atende sua solicitação de barrar todas as postagens que não sejam feitas por ela. Ele permite que alguns burlem a ordem expressa, foi o caso da leitora.

A escritora, pela milionésima vez, apaga a mensagem e envia à intrusa o texto de sempre: “por gentileza, se desejar submeter algo à minha apreciação, envie como mensagem privada e eu decido se quero ou não postar, e quando o farei.” A mensagem é a mesma e as respostas variam pouco: um pedido de desculpas, uma justificativa de que o responsável pela traquinagem foi o filho ou outra criança da casa, ou usa-se a senha permissiva de que “pensou que não tivesse importância”, ou ainda, a escritora iria gostar.

É um bla-bla-blá chato para justificar o injustificável: o perfil de uma pessoa nas redes sociais só é público se o dono ou administrador o abre para a participação do público, se convida as pessoas a postarem, se elas são bem-vindas ao fazê-lo, principalmente quando se trata da divulgação dos insuportáveis eventos de gente adicionada ao perfil. Se o que se quer é mesmo compartilhar (palavra bonita de sentido esvaziado na Web), há mecanismos outros, além da postagem invasiva.

Não constitui invasão quando gente amiga posta uma coisa ou outra no mural de amigos, gente íntima o suficiente para saber o quanto as suas próprias coisas são também coisas da dona do perfil, portanto, bem-vindas.

Mas a moça era insistente e resolveu precificar sua admiração na resposta à autora, disse o seguinte: “engraçado você dizer que não posta coisas do mundo gospel... eu que te admirava tanto pela sua visão de mundo... sei que temos religiões diferentes, mas se for música boa, gospel ou não, pensei que você fosse reconhecer... mas, tudo bem, querida, isso é não ter preconceito...”

O mural da escritora, ao contrário do que a leitora pensa, não está aberto às manifestações artístico-musicais, políticas, etc, que pessoas adicionadas julgam boas. O juízo de valor vigente ali é o da dona do perfil. Também ela não faz apologia religiosa, faz, sim, exposição reiterada, poética e contextualizada de valores civilizatórios de matrizes africanas, muitos deles, representados pelos Orixás e pelos N’Kices.

A escritora é completamente impaciente com a hipocrisia do “sex shop não pode, mas sex shop gospel, pode”; não pode dizer “nossa senhora”, mas “nossa senhora gospel”, pode. Não pode dançar na boquinha da garrafa, nem pode dançar funk, do mais leve ao pancadão, mas pode “bater na portinha do senhor que ele abre, abre, abre”, como diz o sertanejo universitário gospel, ou seria um funk gospel? Existe nesta cultura um projeto de dominação mercadológica e de lobotomia dos consumidores que não interessa à escritora.

Na supermodernidade cotidiana os sentimentos têm preço: “olha, eu te admirava viu? Mas se você não atender aos meus reclames, se não suprir minhas carências, se não disser o que quero ouvir, fico de mal, não admiro mais.” O que fazer? Ossos do ofídio! A escritora vem de um tempo em que se a pessoa quiser gostar, gosta, se quiser admirar, admira, e a pessoa gostada e admirada não é refém disso. Um tempo em que artista era artista, celebridade era celebridade, água e óleo que não se misturavam.

Nos tempos supermodernos aplicam-se os pressupostos celebrativos a qualquer pessoa que tenha o mínimo de visibilidade e ela é esvaziada da condição humana para transformar-se em alguém que atende às vontades do público soberano. A escritora acha que isso é loucura, e ela ainda não enlouqueceu.

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 escritora, Cidinha da Silva mantém a coluna semanal Dublê de Ogum.

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